terça-feira, 28 de dezembro de 2021

MAIS LIVRE

Queria ser mais livre,
mas a gente vai envelhecendo
e botando algemas
em nós mesmos.
Tanto medo de morrer
que acaba morrendo de não-viver.
Hoje já penso como
os velhos dementes que me diziam
pra tomar cuidado.
Agora sou até amigo deles,
os meus amigos que me acompanharam.
Eu queria ser mais livre de mim,
mas sou tudo o que tenho,
e a única posse que vale a pena.
Uma pena eu ter de me vender tanto.
Seminovo deveras usado.
Rodou tanto que agora prefere
ficar parado.
Um velho num jovem de braços,
pernas e genitais
que ainda funcionam
de vez em quando.
Ah, eu só queria uma folga
entre o trabalho de ser
e a paz de fantasiar.
De ser da Terra mas
repousar no meu mundo.
Mais livre disso.
Mais livre do que isso.
Apenas
a s s i m

CHUVA DE FIM DE ANO

Vou te dizer o porquê
de chover todo fim de ano.
É o país lembrando de si.
Lembra que já foi
muito melhor do que agora.
Antes dos portugueses.
Dá saudade, 
velhos tempos.
Fica triste e chora.
Pode reparar que 
garoa como lágrimas e
chove em pancadas,
um pranto em desespero.
O céu chorando.
Mais um ano se passou e
ele anda envelhecendo
tão mal quanto a piada do pavê.
É isso.
Apenas o choro
de um território doente.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

DE COMEÇO EU ENTENDO

Sou bom de começos.
Me perco em meios.
Coleciono fins.
Que você seja
pelo menos um deles
e o melhor deles.
Que o meio tenha gosto
de começo.
Se fim, que seja assim,
enfim, tá tudo bem.
E de começo eu entendo.
Sou bom de começos.
Me perco em meios...

CACHORRO DOG

O dog machucado
abana o rabo
pro olho afetuoso.
São as ruas criando anjos
de ossos expostos.
É de pouco que sorriem
seus caninos imprevisíveis.
Mas é o corre criando
prantos invisíveis.
O dog meio-curado
diz obrigado
com quatro patas.
Revirou tanto lixo.
Olha o bicho! Olha! 
Insisto um 
cardume de insistências.
Olhai por nós.
Latiram depois da meia-noite.
Protegiam por instinto
o homem
de outro homem.
Quem estava dormindo?
Só dormem quando precisam
aqueles que deles precisam.
O dog todo cão
tem mais coração
que essa gente.

EU ACEITO

Eu aceito um cigarro e um afago
bem de perto.
Eu aceito ter desejo por você
mesmo que fale sozinho.
Acredito em princípio, em precipícios
e saltos de fé.
Mas não gosto de pular
sem antes
molhar os pés.
Confio em aceitação,
como você pode ver.
E eu aceito de coração
essa emoção blasé.
É por isso que o vinho
faz tanto carinho em mim.
É o filtro de desalinhos,
infinitos sem dizer.

Eu aceito um cigarro bem mais caro
que me custe te esquecer.
Eu aceito que você já pode ter
outro alguém pra remeter
sua boca, suas coxas, sua pele,
suas roupas, seu perfume,
seus costumes, seu ciúmes,
seu querer.
Eu aceito, eu aceito, eu aceito, eu aceito.
Mas não me peça
pra sorrir.

ALÉM DA PELE

Eu leio suas bulas
um caso incerto de 
certezas desmentidas.
O que conversa contigo
não são cheias-palavras.
É a transparência do cristal.
É a dureza d'água,
dureza abstrata da saudade.
O que conversa contigo
cativando cinismo 
não é boca, beiço.
Não é coisa afora de
vistas clichés.
Fica além da pele.
É o tremelique do ar,
polpa das mãos, suco de fuga. 
É o dizer sem ter dito,
o olhar que faz ver,
toque inquilino
de um desejo secreto.

Escuta! Escuta!
O que nenhuma letra representa.
Nenhuma letra possui tal capacidade.

Quero ter uma conversa de âmagos.
Lambidas de energia,
sua essência
rebolando e quicando
na minha.
Fica além da pele.
Você sabe.
Você sente.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

OS POETAS SONHAM DEMAIS (EXPLICAÇÃO)

os poetas sonham demais
mas são seus sonhos que os carregam.
os poetas sentem demais.
eu sinto muito
pra mim o mundo é mais.

vou tentar me explicar.
talvez você nunca me entenda.
quero uma vida de poesia,
subir a via na alegria,
aproveitar a porra toda desse dia.

é que tô cansado de pensar.
uma mente inteira pra estourar.
é tanta questão antes de ser
tanto corre pra correr
ansiar cansa mais do que viver.

e agora eu já nem sei
se o que sou hoje eu já pensei
em todos os dias que cansei
de me limitar

dentro do meu pensamento,
secando a alma no cimento.
olha só esse momento
já passou.

os poetas sonham demais
mas são seus sonhos que os carregam.
os poetas sentem demais.
eu sinto muito
pra mim o mundo é mais.
é mais do que a gente vê,
e é só a arte que consegue entender.

REQUIEM PARA UM RATO

Um rato, HA!
Tadinho do bicho.
Fugiu da vassoura,
morreu de roda.
Morreu de tonelada.
Morreu, cabou.
Ninguém chorou.
Por que ninguém chorou?
Eu não chorei.
Te juro que não chorei,
nem quando lembrei
do seu desespero e
da sua inocência animal.
Nem do grito que deu.
Eu não chorei, palavra!
Era só um rato.
Quem chora por um rato?
Era, já foi
(tadinho do bicho).

domingo, 28 de novembro de 2021

DEVORADOR




Quero devorar cada filete da vida,
fazer dela churrasco,
no ponto,
sangrando como sangro
por dentro.
Temperar com sal grosso,
mandar ver
ao som de samba raiz,
rock, pagodão, batidão,
silêncio.

Liberdade para devorar a vida
e arrotar meus medos.
Anseio pelo gosto de 
cada 
átomo.

Consumir o tempo
como uso o tempo
para consumir.

Desejo muito da vida.
Desejo tudo da vida.
Você se surpreenderia.
Pois eu sei que acaba,
e acaba rápido.
Quando baterem na minha porta
de foice e capa preta,
de pente carregado e dedo no gatilho,
quero sorrir 
um sorriso mais belo que Deus.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

NO ACOHOL




Sem álcool, sem palavras,
inspirações esparsas.
O som da cidade
tem gosto de jazz.
Asfalto nos pés.
Melancolia até
a boca pedir caridade
prum combo de uísque sem maldade.

Sem álcool e com problemas.
O problema vira poema,
mas aí nada foi feito.
Tem que tá chapado de algum jeito.
O jeito perfeito é ficar em êxtase
sóbrio com o próprio universo.

Fico o dia todo desejando
a boca aguando uma gelada,
vento e nada, disputa acirrada
entre suco ou cachaça.
A noite chega intimando.
Meu corpo inteiro ansiando.
Bora beber? Vamo!

Eu gostaria que as noites na rua fossem mais tranquilas.
Queria uma noite de brisa.
Calma, coração, calma.
E cabeça, vê se para de ladainha.
Um verso pra cada vontade.
Eu peço outra realidade
inquieto e à parte.
Estão todos bêbados e à mim
resta a arte e a poeira dos livros.
Estão todos bêbados e
não consigo entendê-los.
Talvez nem eles mesmos.
Estão todos bêbados e eu
no desassossego,
tentando me livrar do apego
do refresco do álcool.
Mas tem que tá chapado de algum jeito.
É, é preciso estar chapado de algum jeito.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

ANDORINHAS (POEMA NATURAL)

É isso que eu quero.
Invejo as andorinhas.
Elas voam e 
não percebem sua ausência,
nem sabem de si mesmas.
É isso que eu quero;
um poema natural.
Um poema tão natural
quanto o vento
e os pés pelados na grama
e o cogumelo se enfartando
de árvore morta.
O cogumelo devora a morte
como devoramos a vida.
É isso que eu quero.
Azul do céu.
O pensamento de nuvens.
Um poema natural.
Eu sinto sua falta.
Sinto muita sua falta
e é como se eu não pudesse 
mais voar pra você.
As andorinhas ainda voam.
Seus filhotes almoçam os átomos
que pertencem à mim,
à você e à todos.
Invejo as andorinhas.
Invejo as flores.
Invejo a mata virgem
e o seu poema natural.
É isso que eu quero.
Um poema natural
e um abraço seu.
Bem apertado.
Me diz que tá tudo bem.
Me dá um abraço?

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

ODE AO CAFÉ

Um gole de café pra
vida acordar de mim.

Um xícara de coração palpitando
pupilas do mundo 
dilatando no horizonte.

Um gole de café pra ser gente.
Gente que vive,
que pulsa,
que é e que vai ser
enquanto puder.

Café pra levantar
pra escrever
ler sorrir mentir
rir.
Rir como se fosse
a última piada da história.
Rir com o corpo inteiro,
maravilhoso corpo sustentando
o peso intangível de uma
alma fresca.
Alma nova, alma sempre nova,
alma eterna passeando
pela terra de finitudes.

Bebo café e tenho ansiedade.
Bebo um pouco 
e me dá caganeira.
Não lembro o que almocei ontem.
A privada se lembra.

Dedos martelando as teclas
moldando poemas em frenesi.
O aroma do filtro, do pó,
da água.
O som dos pingos.

O café não para aqui,
não para ali,
não te deixa parado.

É energia de sobra vindo de uma fonte desconhecida,
do esconderijo do cérebro,
conexões egoístas que
somem quando preciso delas
(não com café).

Um gole de café
e a vida acorda pra mim.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

TIJOLO POR TIJOLO

Tijolo por tijolo
a gente se monta.
Construímos memórias
com a massa do agora.
Pois aquela dança desajeitada
fará diferença.
Aquela piada sem graça,
que de tão ruim
chupou risadas
do fundo da barriga...
essa piada fará diferença.
Uma lembrança pode
salvar um futuro, 
ser luz num desespero.

Tijolo por tijolo
erguemos nossa mente
pra ter uma vista melhor
da vida.
Há de se construir
até que todo o material acabe,
até que o maquinário
deprecie uma última vez.
Preservar o patrimônio visceral
de um coração que sentiu muito.
E sente sente sente
pra cada batida
no ritmo dos seus olhos
que dançam com os meus.
E que incinera, 
cospe a fumaça sentimental 
pelas chaminés dos gestos simples.
Simples, mas apaixonados
por tudo ao mesmo tempo.

E vou emprestar meus tijolos,
e vou precisar de alguns seus.
Tijolo por tijolo,
construirei em mim 
uma confortável sala de estar
para receber aqueles
que sabem meu endereço.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

NIRVANA


Vou sentar debaixo duma árvore e
chapar o globo
até alcançar a iluminação.
Tô convocando meu Buda.
É tanta abstração que já
esqueci qual o problema,
mas o problema não me esqueceu.

Vou sentar debaixo duma árvore e
tomar um shot de sol
e outro de absinto.
Dois copão de vento,
três carreira de terra.
Quando foi que sorrir sozinho
ficou tão difícil?
Antes era mais barato ser feliz.

Tô há tanto tempo debaixo
da árvore que os pombos
perguntaram se estou bem.
O céu fechou, goró acabou e
alegria é o tempo de vida
de um girassol.
É tudo ilusão e sou
um iludido medindo sonhos
com prestações.
Mas chega;
tá na hora de levantar.

FINADOS

Havia sonhado 
com um conselho:

Quando for dia de finados,
lembre-se de que
você ainda não é um.

Acordou e abriu as janelas.
O sol, que há tempos
não dava as caras,
estava alimentando as
plantas do jardim. 

No canto do quarto,
formigas devoravam
uma barata.
Repartiram em partes iguais.

Quanta morte é necessária
para que se haja vida?

A casa estava uma zona
como pensamentos costumam ser
e a pia estava entupida
e a louça acumulada
e a vida continuava
independente de tudo.

Lembrando que cada segundo
é um segundo à menos
para ser feliz e
que fazer ou aceitar
um convite para 
dar uma volta 
num fim de tarde
pode tornar este dia
espetacularmente simples
em uma lembrança
magnificamente grandiosa.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O TOLO POETA

Eu vou entregar poema
porque pra mim não é problema.
Ser o tolo não é ofensa.
O poeta diz o que pensa.
A arte é minha vida,
deixa a mente mais vazia
pra caber sabedoria
de andar na via infinda.
Eu vou colar na praça,
vou colar na sua cara.
Meu poema não só fala;
ele mira e dispara.
Minha alma tá à venda.
Lê aí e não se arrependa.
Ser artista é muito treta
e o escárnio a gente peita.

domingo, 24 de outubro de 2021

ERROS

pegar o trem no sentido errado,
sem sentido,
apressado como as
rodas nos trilhos.
a culpa é da cachaça e
do fato de ser humano.

apaixonar-se depois de um beijo,
mesmo na promessa
de que não cairia mais nessa.
o coração tá sempre
com pressa de sentir.

entre atritos e feridos,
perder amigos para o ego.
querer estar certo
quando na verdade 
nem importa.

chutar pra fora,
perder a chance.
perder tempo
naquilo que já está
fora de alcance.
é tarde demais.
vamos errar em outras coisas.

tropeçar, derramar o copo,
não dar descarga,
ferir nas palavras.
errar é tão humano
que quando acertamos
parece engano.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

FERROADA

eu estava feliz
até uma abelha entrar no quarto,
olhar minha cara
e ir embora.
não sou suficiente
nem pra uma abelha.
fui atrás dela,
podia escutar o escárnio
nas flores,
enchia a cara de néctar
e ria da minha
barriga branca e
meus braços finos
e bolsos vazios.
fui atrás dela
com a fúria de uma
tempestade e
a encontrei com suas amigas
e elas nem perceberam
minha presença.
estavam todas preocupadas
com seus ferrões.

eu agradeci em pensamento.

a ferroada mais dolorida
é aquela que acontece
dentro da cabeça
e apenas lá.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

PROERD

escuta só esqueci o que ia dizer
é isso aí

é tanta merda que a gente atura
se segura que o trem das onze
veio buscar os
filhos únicos

não adianta sofrer
porque a vida vai te levar
você deixando ou não

não adianta disfarçar as evidências
porque quando a luz vermelha
tá na suas costas
o humilhado será humilhado

eu sei falar com gatos
subir em telhados
ficar no cio
cantando pra lua traidora

eu sei ficar chapado
e dizer não
pra muitas drogas
não todas
ora ora
ora por mim

vou apertar e vou acender agora
vou bolar e vou ascender
tá foda
já viu o mundo lá fora?
vai tudo pra cabeça
na mesma hora.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

TERÇA BESTA

Terça, amiga da chuva.
A chuva é querida do tédio,
paixão do sexo.
É o "Foder do Agora".

Tempo meio bosta.
Garoa, chove, molha
o rascunho 
da calçada.

Terça idiota.
Não é o começo.
Não é o meio.
Não é o fim.
Ninguém se importa.

Abre a porta, deixa a Terça entrar
pra não fazer nada.
Nada como o nada
que há em você
e em mim.
Cinza como cinzas
num cinzeiro
de cimento.

Não dá nem pra fumar uma Terça,
essa porcaria.
Só dá trabalho
pra quem tem sorte
de trabalhar.

Mas vou parar de reclamar.
Alguns trocariam tudo
por mais uma Terça.
Por mais incrível que pareça.

EM DEFESA DO AGORA

Numa chuva torrencial, surgiram goteiras por todos os cômodos. Um fio do poste se soltou na esquina. Qualquer um que passasse ali viraria o omelete que eu esqueci no fogo outro dia.

Então a luz acabou e a única coisa que me restou foi ficar sentado no chão ao lado de uma vela e viver o momento.

Essas palavras estão saindo do meu corpo. E eu quero que você preste atenção nisso: eu como a vida pra cagar poemas. Tudo o que faço (e irei fazer) é merda. Muita merda pra mim e pra você. E eu realmente gostaria que você sentisse o que tô sentindo agora. Essa energia fluindo pelo meu corpo e a alegria de perceber que o que existe tá aqui do lado de fora das nossas mentes. Não existe "eu". Existe um amontoado de átomos que formam o corpo que interage com outros átomos até o universo deixar de existir. E o fato da luz ter acabado, de eu ter ficado sem internet, daquela pessoa ter saído da sua vida, daquele pastel que te fodeu o estômago, daquele fora tomado, daquele boleto não pago...Nada disso conta no final. É sério, eu não consigo explicar com palavras. E se você quiser realmente apreciar o que está prestes a aparecer em frente aos seus olhos, você vai ter que deixar sua mente de lado e ser dominado pelo agora. Pronto?

Vai com calma na tarde.
A hora mágica reflete azul e violeta
sobre nossas peles e
tá tudo bem.
Nós ainda respiramos e
respiramos profundamente até
sentir o pelo do braço levantar.
Há certas coisas não ditas que
talvez nunca o sejam porque
foram feitas pra serem sentidas.
E não há possibilidades;
o poema é quem o lê.
Eu não posso fazer muito mais
do que estou fazendo agora.
Tá dentro de você e
isso precisa sair daí.
Precisa EXISTIR, e
não ser mais um vão pensamento
se perdendo num mar
de preocupações inúteis.
Nós ainda respiramos e
cada gota no ar
preenche meu corpo
como se o alimentasse e
desse um empurrãozinho
pra eu ser o melhor que posso ser
como filho da vida.
E eu não posso fazer muito mais
do que me unir a essa vibe
que faz você descer até o chão
com a bunda pro alto enquanto
eu faço a dança do robô.
A tarde sempre acaba
magnífica.
O violeta vira preto,
do jeito que tem que ser.
E tá tudo bem. Mesmo.
Basta fluir com
essa sensação,
essa exata sensação
de ser infinito enquanto dura.
Um brinde ao amor
de todo dia
que passa despercebido
quando não reparamos
que não somos melhores
do que uma simples gota
no vidro da janela.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

O QUE FAZER EM DIAS DE CHUVA?

Segunda-feira. Céu cinza, chão molhado. Não dá nem vontade de levantar da cama. Mas, se levanto, já procuro um meio de me livrar do tédio. Uma pena o tédio ser essa criatura de presas afiadíssimas, picando minha panturrilha sem querer largar o osso. Um bicho tão teimoso quanto quem vos fala.

Então a chuva continua. Aperta na hora do almoço (o que aconteceu antes?).  Já não sei se espatifei a cara no fundo do poço, nem se há alguma forma de sair dele. Só sei que nele estou e a chuva veio me acompanhar.

Poderia aproveitar e limpar algumas coisas. Organizar o guarda-roupa, a gaveta de meias, os livros na estante. Dá até para mudar os móveis de lugar num almejo desesperado por mudanças. Talvez eu seja um imóvel.

Outra dica valiosa é olhar-se no espelho, no fundo das pupilas, e buscar o abismo que tanto encaramos.  Escrever algumas palavras bonitas que não preenchem o estômago (amaria comer meus poemas).

Assim, espero ter ajudado a sobreviver aos terríveis ataques da mente quando se está preso na própria casa em dias de chuva.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A LIBERTADORA DERROTA

Adoro sentir-me ridículo. Quando coloco uma roupa que não combina ou quando corto o próprio cabelo caindo de bêbado. É uma sensação de derrota, e é a sensação mais libertadora de todas. Pronto, o jogo acabou, eu perdi e não preciso mais jogar. Posso ir embora, posso ficar. Posso fazer o que quiser. Dane-se. 

Sabe quando você leva um fora? Ou quando você termina um relacionamento, ou leva uma suspensão do trabalho? Sim, sim, parece um clique, o mundo fica diferente, as cores mais vibrantes, os passos mais leves. Sorrir torna-se uma genuína expressão de alegria, e não um hábito vazio, uma proteção contra o caos do cotidiano. 

Bem, tudo isso acontece depois do choque inicial. De primeira, dói. E pode doer muito. Pode até matar. Mas se você sobrevive, vem o Nirvana, um curto e ínfimo período de "Foda-se". Você já perdeu. Não precisa se esforçar mais, mentir pra si mesmo ou pros outros. Quem tá na lama tem a chance de se refrescar, assim como os porcos. E não venha me falar mal dos porcos; são seres super inteligentes e, com um limãozinho, super saborosos. 

Acredito que não fomos feitos para ganhar. Estamos aqui para jogar. E perder quando for pra perder. A derrota não só faz parte da vida como é também essencial. É como um aperitivo pra morte. Ah sim, sinto muito te dizer: podemos até vencer na vida, mas não podemos vencer DA vida. E, pra mim, vitória é aproveitar a viagem, seja lá o que isso signifique para a pessoa.

Então, quando você se sentir um perdedor, 
sente, 
relaxe, 
respire e 
aproveite a derrota.
Você nunca sabe quando terá a chance de perder novamente.
 

terça-feira, 12 de outubro de 2021

CANETA

Caneta, canetinha
vai tomar no cu.
Por que sempre
some quando eu preciso
de você?
Vou te chamar de colega.
Colega azul, esferográfica.

Caneta, canetinha,
me faz um poeminha
de putaria

(tô tão carente).

Calcula as contas do mês.
Anota o que falta 
na geladeira
e na minha vida.

Cospe na folha meus sentimentos,
minha relação universal
com o nada.

Vamos, caneta, não falhe agora.
Observo tantos problemas.
Preciso escrever soluções.
Sumir não adianta.

Caneta, canetinha,
acabou a tinta.
Não sei se foi a sua
ou se foi a minha.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

SEGUNDA IMUNDA

Ah Segunda, sua imunda!
Volta e meia me aparece,
uma vez por semana,
de novo, de novo, de novo.

Parece amor do passado
passando
quando quer,
sem convites.

Tento te evitar,
pular pra próxima.
Mas ah, Segunda...
Já tá aí
expulsando meu domingo,
me acordando,
me enfiando no trem.
As rodas deslizando
sobre os trilhos e
minha testa deslizando
pra janela.

Nem engantei a primeira e
a semana já começa
na segunda.

Pego o embalo,
num estralo
tudo faz sentido;
mais uma volta
na corrida infinita.

Ah segunda, a mais querida
apenas quando acaba.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

CADA UM NO SEU TEMPO

O urubu se refrescando 
na antena 
do hospital.

Tá aí uma cena,
uma cena que 
não sei se obscena
ou apenas ironia.

Tava com tanta pressa
de jantar
pressa mas no tempo dele,
compasso cinco quartos,

Asa pena
pata
asa
voa 

E eu bobo
parado na calçada
perdido no meu tempo
e outro bobo
me observando
na janela de sua casa
em rascunhos.

BEBOP DOS ENCONTROS

Oi, vim dizer que
gostei da sua cara.
Há! Você também pensa?
Legal, toma aqui
um pouco da minha história.
Um pouco das minhas palavras
das horas mal dormidas e
da imparcial fumaça
dos vícios ridículos.

Sentamos no banco
conversamos no banco
o banco e a gente.

Sabe, gosto das páginas em branco
mas tenho medo de preenchê-las
porque toda escolha
é uma perda.

Você também é
uma criatura
cansada de perder?

Tanto em comum
tanto encanto
tanto em você
que há também
em mim!

Vamos trocar figurinhas
e completar o álbum
e ganhar uma bicicleta e
andar de bicicleta,
ralar os joelhos e
cotovelos na terra infértil,
no asfalto de cobalto.

Vamos respirar um ar impuro
de botecos dementes,
poluição sonora
e o improvisar das
britadeiras.

Uma esquina,
uma esquina quente
de frente pra
qualquer lugar.
Ah é!
Qualquer situação
sente sente
sinta sinta
que há liberdade
apenas quando
se vive de coração
amando seguindo
a canção de tudo.

Ah, vai ser legal,
você é legal e
estupidamente
especial.
Não haverá ninguém igual,
estrelinha de carne.
Ninguém mesmo.

WHATEVER

Tanto faz em que língua
dizemos mentiras
pra nós mesmos.

Cheguei num lugar
porque viajei nas ideias.
Não foi sem cicatriz.

Mas escuto a canção das manhãs
e das tardes de nuvens rosas
e aí pressuponho
um milagre em ser.

Tanto faz para a água
quais caminhos percorrer.
Somos 70% líquido e,
em alguma parte do resto,
pensamentos.

Não que pra chegar aqui
tenha passado incólume.
As marcas rasgadas
no meu sorriso
não se disfarçam.

Você carregará este peso.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

CATRACA AUTOMÁTICA

A página vazia,
história minha
teimando em existir,
tentando e falhando.

Duas palavras e
apago dez.
Um dia e 
apago um ano.

É tanto nada
que até a 
catraca automática
não me reconheceu.

Mas olhei pro espelho
antes de sair de casa.
Tenho quase certeza
de que havia alguém
do outro lado.

Alguém que amo
na maior parte do tempo.

OUROBOROS

Tô naipe Ouroboros,
devorando-me.
A música favorita
repetida repetida repetida

Mais vale viver
total desconhecido
do que já saber,
já ter sentido
o gosto de tudo,
o olho do mundo.

Na quebrada
o mais difícil de quebrar
são os círculos.

Aqui no extremo 
tudo é rascunho,
projeto inacabado,
dinheiro desviado.

Então é um tiro,
uma dose, uma pose.
Um suspiro, uma tosse,
um close.
A mente no escuro.

Tô naipe Ouroboros,
devorando-me.
A música favorita
repetida repetida repetida

QUEIMANDO SEDA

Seu amor foi como seda
que queima
rápido demais.

Bateu forte,
perdi o norte,
você me levou
pro fundo do sul
das minhas emoções.

E me deixou lá,
esperando um calor
no inverno
da sua
filha-da-putagem.

Mas tá tudo bem,
bem que sei;
um dia serei
a seda de alguém.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

MAIS UM DIA

Afinal posso esperar
mais um dia,
mais um amar.

Mas não venha me dizer
que não dá pra ficar
tanto tempo pra perder
mais um dia,
mais um amar.

Não tem mais decoração.
Só restou os erros em vão.

Tinha espaço pra você.
Aliás, ainda tem
tanto tempo pra perder
mais um dia,
mais um amar.

Eu queria mais de nós dois...
Deixa pra lá, deixa

pra depois. 

domingo, 12 de setembro de 2021

DIAS DE MOFO

Tanto tempo trancado 
e agora meu quarto
tem alergia de mim.
O corpo parado,
dias de mofo
sem fim.
Amando a umidade
do álcool, 
escondido no escuro.
Ah,
chega disso.
Levanto e misturo
meio cloro com meia água
e limpo até minha alma
com tudo que aturo.
Dias de mofo 
já bastam.
É bom tomar um sol
no corpo inteiro
nessa cidade
magnificamente
poluída.
Sorrio pro mundo porque
talvez meu sorriso 
salve uma vida hoje,
nem que seja a minha.
Dias de mofo
acabaram.

SEGUNDO FÔLEGO

Então amanhece e eu preparo
mais uma dose de
vodca com energético.
Brindo as flores da praça,
saúdo a vitória com os parça.
Sobrevivemos
mais uma madrugada.
Ficando acordado tempo suficiente,
vem o segundo fôlego.
O corpo rebobina a fita.
Tiro uma selfie.
Tiro sarro 
da minha cara 
de estragado.
Todas as mensagens são inúteis e
as conversas se perdem
umas nas outras
até a última garrafa secar.
Agora é voltar sem parar,
andando como se descobrisse
os segredos do mundo.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

ABAFADO

naquele calor desgraçado,
achei engraçado o fato bizarro
de não conseguir sair
de casa numa lua daquelas.
é a mente querendo
seguir em frente
com tudo preparado.
mas o mundo é imprevisto
e sempre estou no lugar errado.
fiquei rolando de um
lado pro outro e por pouco
o fogo no rabo
falou mais alto.
beber uma breja,
cachaça, que seja.
mas fugir de tudo
não é de graça,
e meus bolsos toscos
carregavam apenas o troco
em bala.
aí continuei na fornalha,
ansioso por não fazer nada.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

AMOR DE SOBRA

Ainda bem que não gastei
todo meu amor.
Sobrou um monte pra você.
Você fez por merecer
minha mente pensando em te ver
o dia todo. 
No rodo cotidiano 
meu corpo fica pulsando
seu nome, seu jeito.
O encaixe perfeito
de corações insanos.
E eu amo ser o louco
nessa parceria 
que precisa de tão pouco
para continuar na vida
lado a lado.
O primeiro lugar é seu,
disparado.
E o segundo é nosso.
Agradeço por tudo que posso quando corro
pra nos fortalecer.
Meu amor é seu, pra valer.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

POR BAIXO DOS PANOS

Só um toque e arrepio.
Quero tudo, fio por fio.
Te chupar o corpo,
norte e sul, pescoço e cu.
Goza pra mim, sem fim, comigo.
Hoje o único perigo
é a gente querer abrigo
nesse fogo de novo.
É tão gostoso quanto coisa
que acontece uma vez por ano.
E eu não me engano; 
quero mais, 
aquilo que nos satisfaz,
frente e trás,
deitado, em pé, voando.
O corpo quer mais um pouco, 
sedento, gemendo, ansiando 
Quer mais, nem que seja 
por baixo dos panos.


MOVIMENTO SOLAR

sentado no chão
pude perceber
o movimento do sol
observando as sombras
ao meu redor.

coragem coragem pra
encarar o dia
encarar-se todo o dia
e não enjoar de si.

coragem para mudar
quando necessário
e continuar e teimar
quando se tratar
dos sonhos.
mesmo num mar de não,
dizer sim para
o próximo passo.

coragem para manter o ritmo
mesmo na
batida descompassada
do cotidiano.

o sol dá um certo tipo
de energia indescritível.
deixei que queimasse
meus demônios
por alguns minutos.
correram para as sombras.
hoje eu quero
dar um jet
com os anjos.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

SÓ MAIS UM

Só mais um e paro. 
É que varro 
os problemas pra debaixo do tapete. 
É um cacete; 
a fumaça desgasta, 
me rasga por dentro e,
 mano, nem fodendo 
que eu gosto do cheiro.
Parece que o ar que respiro
é puro veneno.
A mente se entretendo
com os próprios cacos.
Caso clássico de descaso. 
É um pouco de desespero, 
ansiedade e teimosia.
Gosto tóxico que alivia,
tosse a próxima sinfonia.
Só mais um e eu juro 
que paro com essa putaria. 

COMPLETO

Papo reto:
não que eu seja incompleto,
mas com você por perto
eu fico repleto
de coisa boa pra compartilhar.
E se você vira,
corresponde meu olhar,
aí não tem pra ninguém.
Quero todo mundo bem
e você mais ainda.
Então vem, vou te ensinar
que amar
não tem nada a ver
com sofrer.
É questão de se perder
mas saber onde procurar
pra se achar.
E eu me acho em você.
Também não minto que sinto
que sou infinito 
nesse sorriso que cê
solta pra mim.
Eu digo: será que sou digno?
Eu sigo, no caminho me alinho.
Quero ser eu mas também seu abrigo.
Então vem que eu te quero tanto
que por enquanto
não penso mais em ninguém.
Mas se eu pensar,
deixa passar,
é só mais um alguém
e meu coração não é ringue
pra competição.
Se fosse, só esse teu jeito
já seria o campeão.
Papo reto:
não sou incompleto,
mas contigo 
sou completo
e um pouco mais.

QUEM É POEFICANTE?

Uma singela pessoa que não para
de inventar poemas
para amenizar problemas.
Sejam os meus
e com sorte os seus,
amém.
Te quero bem.
Sorrindo, vivendo e além.
Obrigado por não agir com desdém.

MEU ROLÊ

Me deixa no meu rolê, 
deixa eu satisfazer 
o que deixei e neguei.
Deixa o bicho solto,
ignorando o torto,
voando na brisa verde,
esquecendo o perrengue.
Ninguém vive na minha
mente, ninguém entende. 
Minha vida não se prende
ao que você pretende.
Meu rolê só a mim pertence.
Quero tudo e nada. 
O mundo e a alma calma.
Quero o acerto e o erro
enquanto você aponta o dedo.
Só me deixa tranquilo 
nesse dia lindo. 
Não quero atrito. Quero o infinito.

NEM VEM

Tá de tiração? Meu coração 
não bate pra esperar.
Você quis me deixar pra lá,
congelando na última gaveta,
esquecido na incerteza.
Mas agora aprendi, fugi dali.
Pode pá, 
fica aí enquanto vou lá
encontrar alguém
que me queira bem.
Nem vem de “meu bem”.
Tô suave sem.
Agora não sou de ninguém
além
de todo mundo.
O amor ficou mudo.
E eu não mudo
mais por você.
Prazer em te conhecer.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

VASO SANITÁRIO

Eu queria escrever uma escada
que me tirasse da fossa.
Mas palavras são apenas
drenagem.
Sistemas de esgoto.
Não vou afogar
nas minhas mágoas,
mas também não vou
escapar do buraco.

Dou uma mijada.
Tento limpar o vaso
com o jato.
Pra quê limpar
uma coisa que só recebe
sujeira?

A gata invade o banheiro,
bota a cabeça no vaso e
observa tudo ir embora.

Ela não liga.
Não sobrepensa.
Tá além do certo e
do errado,
do bem e do mal.
Mesmo no ridículo,
a gata é a gata.
E me extrai uma risada.

Mais uma vez
os bichos me ensinando
a viver.

Valeu pela escada.

O VELHO

Escrevo o Bukowski por cima
das minhas palavras.
Se estão parecidas,
as minhas e as dele,
vejo se
o que falo
é verdade.
Geralmente é.

Poemas são o que temos
de mais próximo
de espelhos
para a alma.

Olhos são superestimados.
Fodam-se o seus olhos.
Me comiam inteiro e
agora se desviam dos meus.

Destruo tudo e
olho pro espelho,
pro velho que
habita em mim.

Um dia eu chego lá.

VÁ BUSCAR



Não espere nada da vida.
Vá buscar pessoalmente.
Na via infinda, 
a pé,
com fé em tudo 
menos naquilo
que você não é.

Só sobra o que se faz e
mesmo fazendo merda
a guerra é interna.
É fazendo algo vivo
que se vive.
E se a vida for 
eterna reprise?
Vai agradecer ou
apodrecer triste?

Não espere a mão beijada.
Respeite a calejada.
Sem ela a gente é nada.

Vai buscar seus sonhos
e todos os pontos.
Rodamos os contos.
Vão contar até os enganos,
e é neles que ganhamos
a força necessária
pra sair dessa jornada
dando risada.

PEIXE



Tem dia que a gente se sente
um peixe fora d'água.
Mas eu não sou peixe, porra,
embora morra 
muitas vezes
pela boca.

A gente fica 
tentando respirar
mares alheios
e quer um conselho?
Pega seus parceiro
e joga todo seu dinheiro
neles e vê
quem vai e quem
vira escudeiro.

Você pode ser poça, lago, mar.
Peixe, sereia, lama.
Você é aquilo que ama e
responsável pelo que encanta.
A ideia é parar
de se encaixar e
buscar paz
onde te tanto faz.

É BRINCADEIRA



Aí maluco, se liga,
brincar de vida
é assim:
a gente cresce, 
se vende,
envelhece,
finge que entende
e quando pisca,
fim.

Se liga doidão,
adulto de porcelana
tropeçando a montanha
de cada dia.
Eu te pagaria
se não tivesse
vendido até as entranhas.

A gente se engana 
e aí acaba e
se espanta.
Não adianta, parça:
o bicho ficou, pegou,
correu e comeu.
Deu tudo 
a mesma merda.

NEM TE VI



Acordei antes do dia.
Terapia matinal:
café passado.
O sol atrasado
subindo o leste,
perdendo o trem.

Tem dia que a gente
vigia antes que nasça.
Antes que faça
da gente rotina.

Ontem quis um dia a mais e,
agora que ele se faz,
tenho pressa para a noite.

E quando passar e
o bem-te-vi acordar,
gritarei pelado
pra vida:
nem te vi,
nem te vi.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

BRILHO ETERNO


Queria limpar minha cabeça
assim como limpei meu cinzeiro.
Cerveja é um ótimo desinfetante,
mas não dura muito tempo.
O problema é fumar tanto.
Virar a própria fumaça.
Não me arrependo até
me arrepender e aí
volto pro início.

Já fiquei várias vidas
sem fumar.
Nessa aqui eu não consigo.
Já fiquei várias vidas
sem te amar.
Nessa aqui eu não consigo.
Para todo adesivo de nicotina
deveria existir um
adesivo de paixão.
Algo que apagasse a memória
num brilho eterno.

Queria limpar minha cabeça
como um banheiro,
uma privada com
descarga forte.
Descarga a vácuo
levando minhas merdas
pro vazio.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

MANIFESTO IMPERFEITO

Eu não vou mais precisar
desse "eu" que
vem de você.

Eu não vou mais me julgar.
É mais fácil
esquecer.

Eu gosto do mar.
Mas não sei nadar.
Eu amei você
mas tive medo

de me afogar.

Decidi deixar pra lá
meus pedaços
com você.

Manifesto imperfeito
não fui feito
pra acertar.

Eu quis o mar.
Te abracei.
Tentei nadar
mas tive medo

de me afogar.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

AMOR DE ALUGUEL



Verdadeiramente seu por alguns minutos até um de nós dois gozar.
Essas coisas são difíceis, não sei apontar a direção do ápice e muitas vezes me perco no caminho pra lá.

Verdadeiramente seu enquanto eu quiser.
Enquanto não enjoamos do suor de nossas mãos dadas.
Um de nós esperava um pouco mais e o outro quis bem menos. Andar na calçada abraçados e ainda assim manter o mesmo ritmo dos passos, sem aquele constrangimento, um subindo e o outro descendo.

Verdadeiramente pode ser seu.
Amor de aluguel.
Parcelas acessíveis.
Aceito crianças e bichos e 
qualquer outra droga.
Calção de três meses de "estamos apenas nos conhecendo".

PERDENDO TOTALMENTE A ESTABILIDADE


É necessário um estilo, uma personalidade,
o que mais representa todo o ser.

É necessário viver cada segundo e
cada milésimo e
cada átomo,
elétron,
quark,
corda,
universo.

É necessário amar.
É necessário lutar.
É necessário querer a paz.
É necessário não se contradizer e
errar e aceitar as contradições.

É necessário já nascer sabendo e
ensinar e não palestrar e
respeitar, exigir respeito.

É necessário salvar o mundo,
castrar os bichos,
ser vegano,
reciclar,
usar amores reciclados.

É necessário estudar, crescer,
ler todos os livros e
conhecer todos os autores e
já ter o caminho definido e
a liberdade de não segui-lo.

É necessário família, mesmo
que seja você e suas plantas.
Família perfeita,
família podre,
não importa.

É necessário nota máxima nos estudos
da imperfeição.

É necessário ter só o básico,
contentar-se com o que tem e
sempre buscar mais.
Dividir o patrimônio,
invadir o patrimônio,
abandonar o patrimônio.

É necessário estabilidade.
A porra de uma estabilidade.
Você consegue ver que sou estável?
Consegue mesmo?
Percebe como eu sigo todas as regras,
tudo certinho,
e mesmo assim mantenho 
minha estabilidade?
Eu sou a puta da estabilidade,
a merda dessa bosta de estabilidade e
não estou chorando agora,
não mesmo,
eu nunca chorei e
é necessário chorar e
é necessário ser feliz e eu
invejo quem não existe.

A GALINHA E O PINTINHO


Perto de uma biqueira, na curva dos sonhos desfeitos, havia uma galinha e um pintinho bicando o asfalto.

Já havia andado para todos os lugares possíveis, buscando algo em que acreditar. Ou uma brisa nova que me levasse pra longe de mim. Mas lá estava o campinho de barro vazio, os prédios descamados e
a galinha vermelha e o pintinho desviando dos carros.

Era amor de mãe.
Era amor de mãe vindo de um pré-alimento.
Um bicho que seria oferecido
numa esquina qualquer
amava seu filhote com 
todas as penas.

Tive de parar, observar e absorver.

A galinha me encarou e pediu trocados.
O traficante se aproximou, “é verde, parça?”.
A ladeira não levava a lugar algum, mas o céu estava rosa e magnífico naquele fim de tarde.


domingo, 1 de agosto de 2021

THE DUDE ABIDES

Ah, tá tudo bem,
deixa pra lá,
não foi pra isso
que comecei essa história.

Não vim dizer alguma coisa,
afirmar um ponto,
dizer o que devemos fazer.

Não vim firmar os pés,
proteger minha reputação,
acariciar meu ego.

Se houvesse algum propósito
de evolução,
crianças não morreriam.
Se melhorar fosse
tão importante assim,
todos teriam a mesma chance,
a mesma quantia de tempo.
Mas, cara, isto é só minha opinião.
Você pode fazer o que quiser
com ela.
Não foi pra isso que vim aqui.

Eu vim porque queria.
E tá perfeito assim.
Só não me diga o que fazer,
o que ser, o que pensar.
Ou diga, dane-se, fala aí.
Se abra.
O vento continua ventando.
O sol continua solando.
E eu vou continuar querendo
até não querer mais.

"Vim"...  que palavra esquisita.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

É TUDO RELATIVO

Meio que já me perdi
em algum minuto desse relógio.
Talvez num segundo
tudo mude.
Vamos esperar.
Vamos esperar.
Vamos esperar.
Vamos esperar.
Ah, espere você,
vou me encontrar
relativamente
noutro tempo.
Seu relógio não tá
sincronizado
com o meu.
Um de nós
foi rápido demais.
E a referência
pediu espaço.

SABOR D'ÁGUA

Um álbum novo pra se escutar
da sua banda favorita.
O som tá no último volume.
Tá sol lá fora,
o dia quase que te implora
para que você
faça parte dele.
Hoje não.
Hoje só há o álbum novo,
e o corpo dançando
músicas que não conhece.
Pois as canções lá fora
já foram decoradas.
Muita deprê.
Baixo-astral.
É tão lindo aqui.
Pena que o desejo de compartilhar
supera o de apreciar.
Apreciar isolado
tem sabor d'água.

DEPOIS DA QUEDA

Depois da queda,
a gente tem uma escolha de
levantar ou ficar
lá no chão.
Eu amo o chão.
O chão é menosprezado.
Creio que precisávamos passar
mais tempo no chão e
entender que 
saímos dele e que
um dia seremos ele.

E um dia nem mais chão terá.
Restos de estrelas
na correnteza do espaço.
Eu ainda não sei nadar.

Você sabe?

ÓRGÃO

Escutei meu órgão cantar
BRUUUUU

Não estávamos na capela,
mas creio que Deus
escutou meu peido.

Talvez fosse uma oração
bem profunda
pedindo a paz
para toda essa gente
que se odeia.

Ou talvez apenas uma nota,
uma nota destoante,
do meu órgão.
Um milagre divino.

Já bebi muito mais que isso,
mas mesmo assim
passo mal com menos.
São marcas do tempo.
Acorrentados à algo
que nem concordamos.
A vida é abusiva e
nem pede licença.
Já nascemos chorando;
preparo pra vida adulta.
Mas que adulto
te abraça
quando você chora?

Já bebi muito mais que isso,
e hoje eu vou ficar
só na cerveja.
Só na terceira lata.
Amanhã tenho o caralho todo
para resolver.
Você tem uma boceta toda.
Desculpa a língua.

Já bebi demais.
Chama a porra
do Uber.

PAUSA PRO CIGARRO

Sim, é literalmente
uma pausa pro cigarro.
Você queria um poema?

A BUSCA INCESSANTE

Sempre me incomodei
com areia nos pés.
Até que essa foi
minha única opção
pra chegar ao mar.
E então me incomodei
com o mar.

INVISÍVEIS TAMBÉM SENTEM FRIO

Algum dia existi.
Não hoje.
Talvez nem amanhã.
Mas um dia existi.
E um dia alguém me viu.
Algum dia fiquei bem.
E num dia sorri.
Sim, me lembro bem,
eles sorriram também.
Estavam bem em seus papéis.
Fiquei no improviso.
Cenário.
Um dia eu existi e
quero existir 
semana que vem também.
Mas aí são eles que decidem.
Eu só cumpro meu papel.
Pena que papel não esquenta.

UMA PUTA DE UMA DESPEDIDA

Você sussurrou
alguma coisa impossível,
e aí viemos pra cá.
Não há lugar algum,
nem nada para mais tarde.
Sua voz fica cada vez
mais distante.
Será que alguma vez
já estivemos próximos?
Por que não nos abraçamos
por mais tempo?
É tão tarde,
tão tarde e
estão todos dormindo.
Vamos falar mais baixo.
Ouvir um ao outro;
é tudo do que precisamos.
Mesmo que seja bobagem,
o que não foi até então?
Apertamos as mãos.
Já falei tanto que,
agora,
não consigo dizer mais nada.
E você não respondeu.

PORTUGUÊS / RUSSO

É a serenata da cidade.
Quero ficar louco até enxergar 
português em russo.
Viver segundos concretos.
Vazando de um dia ao outro,
apertando cinzas
como se ficassem sólidas
nos meus dedos.
Tiro!
Pra ficar ligado.
Tiro!
Pra me importar.
Assistindo a vida
num filtro tosco de
tela azul.
Nem imagino pra onde foram 
os sonhos de verão.
Nem sei se 
devo me preocupar.
Não é hora pra isso.
É hora de lembrar quem sou, 
ou aceitar o próximo trago.
Não há meio-termo nessa brisa.

terça-feira, 27 de julho de 2021

O ÚLTIMO CIGARRO(?)

Tô ansioso, fumo.
Tô tranquilo, fumo.
Tô sempre alguma coisa.
Eu nunca tô nada.

Penso, fumo.
Como, fumo.
Bebo, fumo.
Tô sempre fazendo algo.
Eu nunca tô fazendo nada.

O coração fica batendo e
a boca fica te desejando
e quando tô do seu lado, fumo.
Quando tô longe, fumo.
Tô quase sempre orbitando.
Eu quase nunca tô no nada.
No quase que sobra eu fumo.
De resto fica só fumaça.

É por isso que sempre volto.
Há desculpas e nenhuma solução.

Fumo perguntando.
Fumo respondendo.
E entre um silêncio e outro,
preciso ir até a padaria
comprar mais um maço.
Até lá, fumo
o último cigarro.

VACINADO

Tentei acender o cigarro,
perdi o isqueiro.
Ainda não há vacina para isso.
Vivo remediando o passado,
o presente anestesiado
para as dores futuras.

Recomendaram exercícios e frieza.
Corações em quarentena.
Falaram pra cuidar de mim primeiro.

Achei o isqueiro,
acendi o cigarro do avesso.
Ainda não há vacina para isso.
Um acidente isolado.
Bem, tá tudo isolado mesmo.
Nisso já sou vacinado.

Recomendaram "Memento Mori".
Eu prefiro "Carpe Diem",
mas só lembro de madrugada.

O isqueiro e o cigarro acabaram.
Meu cérebro de lagarto tem sede
de vida.
Ainda não há vacina para isso.

terça-feira, 20 de julho de 2021

POTENCIAL SOLAR

O sol na cara e o cachorro latindo
e todos os problemas do mundo
num pensamento a cada segundo.
Esconderam meu potencial
na gaveta da insegurança.
É fácil esquecer-se neste mundo barulhento.
Em tantas vozes egoístas.
O difícil é escutar o que vem de dentro e entender
o que é verdade e
o que é besteira.

O sol na cara, no corpo e na alma.
O cachorro continua latindo e
parte minha quer brincar com ele e
outra parte quer explodir a praça toda.
Roubaram os meus sonhos e
gastaram nos sonhos deles.
Tudo bem; de onde eles vieram
há muito mais.
Meus sonhos são infinitos e
é por isso que ainda não realizei
nenhum.
Ou talvez seja por causa
do pôr-do-sol.
Só saberemos no final da noite.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

DEAD URUBU

Tive que arder meus olhos pro céu.
Penas pretas caindo das nuvens.
Como os urubus não esbarram
uns nos outros?

Ah, meu coração sangra
em arame farpado enferrujado.
É isto.
Estão me rodeando,
prontos para devorarem
o que restou das minhas ilusões.

Ração para verme.
Eu tô dead, urubu.
Eu tô dead, urubu.

Tive que arder meus olhos
para mais uma semana
em que invejo o barro
que ainda não é Adão.
Como os urubus dividem
as carcaças?

Ah, meu sossego emputeceu-se
de tanto tédio.
É isto.
Serei bicado igual
um cavalo podre.

Ração para verme.
Eu tô dead, urubu.
Eu tô dead, urubu.

Venha me buscar antes
que eu passe da validade e
te dê dor de barriga.

Ração para verme.
Eu tô dead, urubu.
Eu tô dead, urubu.

terça-feira, 13 de julho de 2021

DISTANCIAMENTO EMOCIONAL

Sou mais bonito de perto,
então não fique longe de mim.
Combinamos alguma coisa.
Eu levo a chuva e depois
você conta quantas vezes
se molhou nela.
Porque veja só que tarde bela,
diferente de tudo o que
disseram que não era.
Pode colocar sua mão no fogo,
o corpo inteiro se quiser:
distanciamento emocional
corroendo meu coração
pessoalmente.
Você se merece tanto e
eu me mereço mais.

Combinamos alguma coisa.
Você compra as passagens,
a gente viaja só de ida
para algum lugar bacana.
Pego minhas coisas,
esqueço os problemas
na outra mala.
Você aproveita a chuva,
eu conto quantas vezes
fugi dela.
Porque veja só a aquarela
pintada de estrelas,
o que a gente era.

Sou mais bonito de perto.
Não fique tão longe assim.
É, me faça o favor;
não fique tão longe assim.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

FIOS DE COBRE

Tentei ganhar dinheiro com
fios de cobre e
ganhei dores nas costas.
Eu queria pagar essa rodada
para ver você sorrindo.
Mas levaram meu dinheiro
quando fui tomado pelos vícios.
A música tá no último volume
e treino mil maneiras de não pensar
tanto em você.

Fui vender os fios de cobre.
A conta estava zerada.
Será que sou suficiente
para te amar?
Falaram que é idiotice.
Compraram cervejas amargas demais e
o cobre não rendeu
tanto assim.

Vendi meus erros também,
cinco centavos o quilo,
minha maior fonte de renda.

terça-feira, 6 de julho de 2021

O CONTO

Pimentão. Foi a única coisa que passou pela minha cabeça, e eu ansiava uma ideia nova, algo substancial para escrever um conto que me tirasse da fossa. Aquela volta pelo quarteirão não estava funcionando, então decidi caminhar até a Praça Brasil e no meio do caminho rezei para achar uma carteira recheada no chão. Sem documentos. Se houvesse algum, ficaria com peso na consciência depois de gastar o dinheiro. Até negociei por uma nota de cinquenta, depois baixei para uma de vinte e no final procurava por moedas. Futuquei um papel azul e era só um folheto de lava-rápido. Dez conto a ducha. Joguei fora o papel numa lixeira.

Um carro da PM andou do meu lado e foi reduzindo a velocidade, e eu fiz uma lista mental de tudo o que carregava no bolso, se não havia esquecido uma ponta dentro de um maço ou algo do tipo. Há anos que não fumava um, mas a luz vermelha da sirene te faz pensar até no número do RG de trás pra frente. Talvez quisessem pedir uma informação, saber como chegar na Virgínia Ferni, ou se eu havia visto alguém suspeito. Era improvável. Que merda: eu só queria uma inspiração e seria enquadrado, humilhado à toa, já não bastasse eu ser escritor, pobre e sem ideias. O veículo me ultrapassou e desceu sentido à estação José Bonifácio.

Cheguei na Praça e sentei num banco de concreto, perto de uma delegacia, e comecei a matutar: um homem é preso porque rouba um pimentão num mercado. Mas então um caminhão carregado de cocaína foge em alta velocidade, se choca com a viatura e os dois policiais na frente e o caminhoneiro morrem. O prisioneiro escapa ileso, arrebenta a porta de trás, vai até o banco da frente, encontra a chave das algemas no patê de farda e foge. Ele volta ao mercado e tenta roubar outro pimentão. Fica com medo, deixa o legume com uma das caixas e pede desculpa. Essa era a ideia do conto. Fantástico. Agora só precisava de um bom começo, algo marcante.

“José olhou para os dois lados antes de colocar o pimentão no bolso da jaqueta jeans surrada...”

NADA SÓBRIO

Há trinta e poucos dias que não fumo, não bebo e não vivo. Os mesmos prédios de sempre poluem as vistas; são o estandarte do tédio. Apoio os braços preguiçosos na sacada e procuro algo no céu tom de sábado morto. Alguma resposta divina. Escuto os deuses rindo, fumando palheiros de ouro e bebendo vinho. A varanda assiste meu definhar ao desgastante girar dos ponteiros.

Meu primeiro gole foi quando meu pai e eu estávamos num bar aleatório. Contava uns oito anos de vida. Ele me ofereceu um pouco de conhaque. Tinha um sabor amargo, idêntico ao remédio para febre. Percebeu minha careta e esfregou meus cabelos. “É ruim, né filhão? Só não conta pra sua mãe. É nosso segredinho”. Depois que minha mãe nos abandonou, essa se tornou a única lembrança que tenho do meu pai demonstrando afeto.

Entro no meu quarto e afundo o rosto carcomido no travesseiro. O que resta do dia é respirar até meia-noite. Com sorte sentirei gratidão no banho ou quando estiver cagando, ou quando a água do café borbulhar. Por enquanto, é apenas um nada sóbrio. Vazio cercado de páginas em branco, histórias que nunca acontecem.

Na tarde seguinte, minha última amiga vem me visitar. Fuma um delicioso cigarro na minha frente. Seu rosto possui aquele desdém que só os gatos conseguem transmitir. “Parou com tudo mesmo?”, ela pergunta. Digo que estou tentando melhorar. “Só porque você parou de fumar e beber não significa que você é uma pessoa melhor. Ninguém é melhor do que ninguém”.  

Vai até a geladeira e guarda as latas de cerveja. Dou uma espiada nela. Apoia a bituca nos lábios vermelhos. Consigo ver sua saliva quente. Lambo meu beiço. Saudade daquilo. “E aí?”, ela pergunta. E aí o quê? “Os copos. Onde você guarda os copos?”. No armário de cima. Aí mesmo.

Ela puxa a mesa de centro e preenche o copo com cerveja. O colarinho espuma até o topo e quase transborda. Sabe, não gosto muito dessa tentação toda. “Se você não aguenta ver, é porque não tá pronto pra parar”. Minha última amiga é uma otária.

Meio bêbada, ela entra no elevador.  Da sacada, vejo suas mechas loiras seguindo pela avenida rumo à estação. Semana passada era ruiva. Amanhã seu cabelo estará azul, para combinar com os olhos. Ela vira o rosto e olha em minha direção. Acena. Desaparece ao dobrar a esquina.

O fim da tarde acompanha meu corpo inerte e destituído de sonhos, uma carcaça vazia, sem dopamina alguma. O sol desfalece aos poucos. Talvez eu já tenha morrido há tempos. Respiro fundo. Cheiro de incenso vindo dos maconheiros do apartamento ao lado. Milhares de cabeças rolando a vinte metros dos meus pés. Nenhuma delas tem uma resposta. O Conjunto Habitacional esquecido, tricotando famílias problemáticas. Pais que odeiam os filhos. Filhos que esquecem os pais. Um aparelho de som é trocado por uma pedra. O peso do mundo começa a lesionar minhas costas e a minha cabeça. Entro desnorteado, sigo até a cozinha e abro a geladeira; sobrou uma latinha.

 “Nunca serei uma pessoa melhor”, eu grito, levantando minha quarta dose de pinga com limão, “porque ninguém é melhor do que ninguém”. O senhor sujo do meu lado não entende nada. “Se ninguém é melhor do que ninguém, como posso ser melhor do que aquele que já fui?”, eu concluo a retórica. O velho discorda, apoia as duas mãos no balcão e começa a balbuciar sobre sua vida. A ex dele fugiu com um viciado em cocaína. Só entendo isso. Peço mais um litro de cerveja e um maço de filtro vermelho estoura peito. Se é para cair no abismo, que seja dando salto mortal.

Acendo o cigarro com um isqueiro emprestado e aprecio a fumaça tóxica corroendo meus pulmões. Dou um gole bem devagar na cerveja para hidratar a goela. A combinação perfeita. No boteco só há homens. Velhos e destruídos, dão passos sem rumo com as cordas vocais queimadas. No canto, uma televisão ignorada gastando energia à toa. O cheiro de desilusão sobe misturado à neblina dos cigarros tragados.  O senhor sujo termina sua história e brinda comigo.

Comecei a evitar meu pai, suas palavras de mármore, quando mudei pra cá e me estabilizei. Na época eu gostava apenas de vinho. O velho me ligava e eu retirava a bateria do meu telefone. Arranjou uma namorada dois anos mais nova do que eu. Um dia apareceram aqui na minha porta, como pesadelos persistentes que te perseguem durante a madrugada.

O álcool lambe meu rosto e o meu corpo inteiro, fazendo cócegas nas bochechas e no cérebro. Sinto vida na ressaca.  É mais natural trabalhar assim e responder e-mails, preencher planilhas, participar de reuniões. Tudo à distância. Tudo distante de mim. Os problemas se escondem depois que a rolha sai da garrafa. Gênio etílico. Até o clima fica mais agradável. Pede uma cerveja. Bebe-se para comemorar, para enlutar, para que algo aconteça. O fígado pinga em suor. A pele ganha um tom amarelado. A existência ganha todas as cores. Não importa qual dia seja; todo dia pode ser seu último.

Ligo o rádio e remexo minha bunda nua em cima do sofá. Compro uma planta. Ela morre em oito dias. Bebo uma garrafa de vodca e jogo o vaso pela sacada. Planta voadora. Escuto o vaso preto de plástico espalhar a terra e a planta na calçada. Que merda. Desço e recolho a sujeira. Algumas pessoas passam por ali. Olhares suspeitos. Apertam o passo quando não consigo ficar de pé. Ninguém é melhor do que ninguém. Os caras lá do boteco entendem isso.

O senhor sujo me arranja um cigarro solto. Ele nunca sai dali. Faz parte da mobília como a mesa de bilhar ou a máquina caça-níquel escondida no banheiro desativado. Está fedendo à graxa e fritura. Bebo mais um copo de cachaça para esquecer o cheiro. Criamos uma espécie de amizade que nasce na primeira dose e morre com o fechar das portas de aço.

Ele volta a falar sobre a ex-mulher, mas de algum modo a propaganda na TV está mais interessante. Comercial de cerveja. A alegria só é real quando bêbada. Interrompo o velho e digo: “Um brinde à nossa felicidade”. Ele fica imóvel por alguns segundos. Levanta o copo e conclui: “você é um cara digno”. Reparo que seus olhos se enchem d’água. O que é isso? Já está ficando emotivo? Ele esfrega o rosto com a manga da jaqueta jeans surrada e começa a dizer alguma coisa sobre a filha falecida. Minha bexiga grita e corro pro banheiro. Volto e mudo de assunto.

Caminhamos entorpecidos por noites ingratas. Cães abandonados rasgando sacos de lixo, iluminados pelas lâmpadas laranjas dos postes que presenciam tudo. Os pixos nas portas dos comércios fechados são ignorados pelas crianças com vodca e energético nas mãos. O que mais podemos fazer num lugar assim? O velho começa a cantar Tim Maia. Diz que a ex dele amava Tim Maia. Para de cantar abruptamente. Se despede e aponta para a esquina. “Moro ali perto”. Provavelmente em alguma calçada maltratada. Irei chamá-lo qualquer dia para almoçar em casa e ver se a gente se dá bem sem beber. Os nossos corpos balançam, lutando contra a gravidade. Depois a gente se vê. Sempre há depois.

“Ele morreu”, o dono do boteco diz. “Se matou. Misturou uns remédios com cachaça”. Olho em volta; continuo vendo apenas homens tristes. Não quero ser mais um. Quero outra dose de conhaque. Acho que vou voltar para casa. Não estou me sentindo muito bem. Quando fecho a porta da sala, uma lágrima escapa do meu olho direito. Só uma lágrima.

Ofereci um pouco de vinho para meu pai e sua namorada. Eles se aconchegaram no sofá. Meu pai arreganhou as pernas; era como se fosse dono do prédio inteiro. “O bairro aqui é muito perigoso”, ele disse. Nunca tive problemas. “Tá trabalhando de que?”. Home Office para uma startup. “Sem estabilidade alguma. Devia trabalhar em banco ou prestar concurso público”. Talvez futuramente. “Não tá namorando ninguém?”. Estou focado na minha carreira. “Você precisa arranjar alguém. Você sempre foi solitário. Veja eu, por exemplo...”, sim, tudo bem. Entendi. Quem sabe agora você começa a agir feito homem e ela não te abandona que nem minha mãe?

Os dois foram embora. Acabei não comparecendo ao enterro do meu pai.

Chamo minha última amiga para beber umas cervejas. Ela vem. Cabelo verde e um engradado. Um maço novo de mentolado. A primeira lata a gente vira de uma vez. Furamos a parte de baixo, abrimos um pequeno buraco e então viramos o lacre. A cerveja sai num jato só. Arrotamos e acendemos um cigarro. Bebemos a segunda lata normalmente enquanto desabafo sobre o senhor sujo. Ela tenta me consolar: “nunca sabemos o que se passa pela cabeça das pessoas”. De certa forma, me sinto culpado. Não sei ao certo por quê. É como se eu pudesse ter evitado isso. “A culpa não é sua”, minha amiga responde. “Bebe que passa”.

Continuamos esvaziando as latas até estarmos totalmente chapados. Não consigo desgrudar meus olhos da boca dela. Parece estar mais rosada do que das outras vezes. O contorno dos lábios contrasta delicadamente com a pele branca do rosto. Chego mais perto. Ela percebe. “Você sabe o que penso disso”. Respondo que não me importo e que nunca sabemos o que se passa na cabeça das pessoas. Olha para minha boca semiaberta e ri. A gente se beija.

Na manhã seguinte ela levanta primeiro. Veste a calcinha e o sutiã. Está atrasada para algum compromisso. Durante o dia todo, evito ficar pensando nela. Não repetirei o mesmo erro da outra vez. Foco na ressaca. Tomo um chá de boldo que desce com gosto de segunda-feira. Dez minutos depois, mando uma mensagem para minha amiga. Vamos repetir a dose semana que vem? Ela diz “talvez”.

A semana passa. Deixo tudo preparado. Compro um vinho que ela gosta. Depilo meu corpo inteiro e bebo uma lata para relaxar. Dez horas da noite e nada. Abro mais duas latas. Onze horas e nada. Já estou na sexta lata. Meia-noite ela envia uma desculpa. Diz que saiu com uma garota. Mato a garrafa de vinho em poucos goles. Meus dedos bêbados respondem com todos os insultos possíveis. Não mereço ser tratado assim. Minha casa não é adega. “Eu pensei que você tinha melhorado. Mas me enganei. Não me procure mais”, ela manda. Eu digo que nunca melhorei porque ninguém é melhor do que ninguém, mas ela é pior do que todo mundo. Depois disso nunca mais houve uma resposta.

Durante a noite, sonho com o velho sujo. Estou no corpo dele, fumando um charuto no balcão do boteco. Na banqueta do meu lado, um menino balança as pernas. Veste meias brancas, um shorts azul e uma camiseta listrada. É muito parecido comigo quando eu era criança. O menino me pede guaraná. Pego meu copo de conhaque e dou para ele. Esfrego seus cabelos. “Você está melhor?”, ele pergunta. Digo que não. “Eu gostava mais da gente antes, sabia?”. Sim, eu sei. Desculpa. O menino então implora: “por favor, não me deixa morrer”.

Acordo em prantos.

 

segunda-feira, 21 de junho de 2021

NÉLSON GONÇALVES

Então eu assisti este vídeo, o Jô
entrevistando-o lá em 90.

Assisti sua gagueira e o
"R" pronunciado daquela forma que
os radialistas dos anos 50 costumavam
pronunciar,

e a voz grave e o jeito
lento e boêmio de contar histórias.

Aquilo me lembrou meu avô.
Escutei claramente sua voz cantando 
"Naquela Mesa".
O cigarro de filtro branco 
no bolso da camisa,
a postura reta, 
a barriga redonda que herdei. 

Os cabelos lisos penteados para trás.
A piada sempre na ponta da língua...

Algumas lágrimas caem sozinhas
como se outro alguém
as chorasse.

Era o neto com saudade.
Com muita saudade de um grande homem.
Ele gostava de Nélson Gonçalves.

As pessoas morrem duas vezes.
A primeira é quando o corpo padece.
A segunda é quando te esquecem.
Meu avô só morreu uma vez.

Obrigado, Seu Ismael.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

O VEÍCULO

Estou com este hábito de caminhar por ruas que não conheço. Saio de casa, escolho uma direção e vou me enfiando por aí, descobrindo lojas, praças e cantinhos onde o sol parece mais gostoso. Tenho feito isso por desespero.

Nosso corpo quebra. Não sabemos quando, nem como. Mas uma hora as costas doem e o que se fazia antes numa brincadeira agora é impossível na necessidade. Tenho lamentado no banco do motorista por muito tempo. Fiz 29 anos rodados, ainda consigo subir ladeiras de primeira. Único dono. Mesmo assim, encosto a testa no volante e questiono a estrada. Por que nos botaram aqui, assim, desse jeito?

Tenho caminhado sem sentir que caminhei. Mesmo com os pés na rua, parece que ainda estou no meu quarto. E hoje uma moto quase me atropelou. Passou fininha do meu lado. Se eu tivesse virado o rosto, o motoqueiro teria acertado meu nariz com sua testa. Na hora meu coração disparou. Mas, ao invés de amaldiçoar a situação, sorri. Aquilo era real. Meu peito estourando, minhas pupilas dilatadas, a garganta seca; estava vivo, fora de casa, fora da minha cabeça por pelo menos alguns segundos. Todos os atos desesperados são tentativas de fuga da própria mente. Eu era o próprio Andy num Sonho de Liberdade.

Não importa o quão longe você vá; pra onde você for, lá você estará. Carregando a mesma bagagem, o peso nas costas. Não dá pra distanciar-se de si.

Também não importa o que você faz pra se distrair. Quando se é vazio, todos os consumos são desperdiçados no buraco. Pode beber e se entupir à vontade. Pode gastar dinheiro, transar, fumar, ler, assistir, cheirar... No final, é você consigo mesmo. A culpa não é do mundo.

De repente estou na minha cama novamente, pensando e pensando e pensando. A única prova de que caminhei são anotações que fiz no meu bloco de notas preto quando sentei numa pracinha. Isso e a minha lombar dolorida. Assisto o resto do dia morrer pela minha janela. Um lindo dia de poucas nuvens.

Desligo os faróis. Retiro a chave do contato. Inspiro profundamente. Expiro consciente uma última vez.

Amanhã será diferente.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

PAPINHO FURADO


Faltava uma certa revolta ali;
a vida os mastigava,

triturava suas almas e

ficavam com a mesma cara
de besta
falando sobre as mesmas
besteiras,

reclamando do fulano,
da sujeira na mesa,
culpando as estrelas.

SUPERESTIMADA

Aí um dia desisti de ser feliz.
Anos correndo atrás
da mesma coisa

sem que ela me desse valor.

A felicidade é superestimada;
já conheci muita gente bosta
que só sabia sorrir.

Felicidade não tem peso, massa, energia.
É pó de fada,
promessa.

Prefiro correr atrás de sonhos,
pessoas gostosas,
rolês secretos.
E que a felicidade venha me procurar
quando eu estiver ocupado
com todo o resto do mundo.

terça-feira, 15 de junho de 2021

PALAVRA CERTA

Com quantas palavras se faz uma emoção?

Montar uma que
te una à mim
da mesma forma

que eu tô em você.

Talvez não saiba,
é,
talvez você nem desconfie.
Mas já dei tanta brecha
que me sinto um buraco.

o orgulho continua o mesmo,
só pra tapar erro.

Com quantas emoções se diz
a palavra certa?
Tenho dito demais.

acho que vou escutar
a voz fria da rua
em mais uma noite
que você "nem".

O TROCO DA MEIA-VIDA


O corre é louco e
o pouco que ganho
ganho correndo muito.

e vejo tanto
com pouco
e pouco com tanto

que às vezes bate um desespero, uma raiva
que fica pra lá,
tenho que levantar,
ganhar o troco da meia-vida, meio morrendo
todo dia.

o corre é louco, tampouco
a caminhada

longa como estrada
de começo, meio, meio
(essa porra não tem fim?)
Nem sobra tempo prum sorrisinho. Nem
espaço fininho
no trem lotado.

corre, louco, desbotado
de qualquer cor.
Corre, louco, desgastado
como peça descartável.

quem sabe um dia
te dão uma chance?

BILHETE

Bilhete de amor,
com amor

lembrança de que
ainda amo

tanto quanto da primeira vez.

Te escreverei quantas vezes
o coração permitir.
Ele anda batendo
sempre na mesma tecla

Tu-dum, Vo-cê
Tu-dum, Vo-cê
Tu-dum, Vo-cê

Agora vem bater 
Em mim, pra mim, aqui
antes que eu bote fogo
neste monte de papel;

bilhetes de amor.

LAVANDERIA


Nunca meço o sabão e
a água

nunca meço os quilos

nem separo cores.
quantos processos 
são necessários
pra limpar a cabeça?

a roupa tá no caldo.
Seca no vento
da tarde.

Maquinário gira e gira
e o tanque dança
e o que passou, passou.

Nunca passo a roupa.
Vou amassado
de amasso em amasso
tentando me endireitar.

na lavanderia de vida
Pendure camisetas em cabides
bata três vezes pra não enrugar.

repita até o fim.
até o fim

GENTE LOUCA

Gosto de gente que não precisa
enlouquecer
pra ser louca.

Já vem escrita

na história da própria pele,
na testa
"sou bobo e procuro semelhantes".

Gente que te lambe
como cachorro adotado.

Já lambi muita gente de repente
e poucos gostaram.

Isqueiros da madrugada,
que querem só aumentar
seu fogo,
o calor interno das emoções,
o calor intenso,
que só filhos de sóis
possuem
sem precisar possuir
um ao outro,
tão livres quanto o tempo.

Me arranja alguém assim
que eu te pago uma rodada.