terça-feira, 6 de julho de 2021

NADA SÓBRIO

Há trinta e poucos dias que não fumo, não bebo e não vivo. Os mesmos prédios de sempre poluem as vistas; são o estandarte do tédio. Apoio os braços preguiçosos na sacada e procuro algo no céu tom de sábado morto. Alguma resposta divina. Escuto os deuses rindo, fumando palheiros de ouro e bebendo vinho. A varanda assiste meu definhar ao desgastante girar dos ponteiros.

Meu primeiro gole foi quando meu pai e eu estávamos num bar aleatório. Contava uns oito anos de vida. Ele me ofereceu um pouco de conhaque. Tinha um sabor amargo, idêntico ao remédio para febre. Percebeu minha careta e esfregou meus cabelos. “É ruim, né filhão? Só não conta pra sua mãe. É nosso segredinho”. Depois que minha mãe nos abandonou, essa se tornou a única lembrança que tenho do meu pai demonstrando afeto.

Entro no meu quarto e afundo o rosto carcomido no travesseiro. O que resta do dia é respirar até meia-noite. Com sorte sentirei gratidão no banho ou quando estiver cagando, ou quando a água do café borbulhar. Por enquanto, é apenas um nada sóbrio. Vazio cercado de páginas em branco, histórias que nunca acontecem.

Na tarde seguinte, minha última amiga vem me visitar. Fuma um delicioso cigarro na minha frente. Seu rosto possui aquele desdém que só os gatos conseguem transmitir. “Parou com tudo mesmo?”, ela pergunta. Digo que estou tentando melhorar. “Só porque você parou de fumar e beber não significa que você é uma pessoa melhor. Ninguém é melhor do que ninguém”.  

Vai até a geladeira e guarda as latas de cerveja. Dou uma espiada nela. Apoia a bituca nos lábios vermelhos. Consigo ver sua saliva quente. Lambo meu beiço. Saudade daquilo. “E aí?”, ela pergunta. E aí o quê? “Os copos. Onde você guarda os copos?”. No armário de cima. Aí mesmo.

Ela puxa a mesa de centro e preenche o copo com cerveja. O colarinho espuma até o topo e quase transborda. Sabe, não gosto muito dessa tentação toda. “Se você não aguenta ver, é porque não tá pronto pra parar”. Minha última amiga é uma otária.

Meio bêbada, ela entra no elevador.  Da sacada, vejo suas mechas loiras seguindo pela avenida rumo à estação. Semana passada era ruiva. Amanhã seu cabelo estará azul, para combinar com os olhos. Ela vira o rosto e olha em minha direção. Acena. Desaparece ao dobrar a esquina.

O fim da tarde acompanha meu corpo inerte e destituído de sonhos, uma carcaça vazia, sem dopamina alguma. O sol desfalece aos poucos. Talvez eu já tenha morrido há tempos. Respiro fundo. Cheiro de incenso vindo dos maconheiros do apartamento ao lado. Milhares de cabeças rolando a vinte metros dos meus pés. Nenhuma delas tem uma resposta. O Conjunto Habitacional esquecido, tricotando famílias problemáticas. Pais que odeiam os filhos. Filhos que esquecem os pais. Um aparelho de som é trocado por uma pedra. O peso do mundo começa a lesionar minhas costas e a minha cabeça. Entro desnorteado, sigo até a cozinha e abro a geladeira; sobrou uma latinha.

 “Nunca serei uma pessoa melhor”, eu grito, levantando minha quarta dose de pinga com limão, “porque ninguém é melhor do que ninguém”. O senhor sujo do meu lado não entende nada. “Se ninguém é melhor do que ninguém, como posso ser melhor do que aquele que já fui?”, eu concluo a retórica. O velho discorda, apoia as duas mãos no balcão e começa a balbuciar sobre sua vida. A ex dele fugiu com um viciado em cocaína. Só entendo isso. Peço mais um litro de cerveja e um maço de filtro vermelho estoura peito. Se é para cair no abismo, que seja dando salto mortal.

Acendo o cigarro com um isqueiro emprestado e aprecio a fumaça tóxica corroendo meus pulmões. Dou um gole bem devagar na cerveja para hidratar a goela. A combinação perfeita. No boteco só há homens. Velhos e destruídos, dão passos sem rumo com as cordas vocais queimadas. No canto, uma televisão ignorada gastando energia à toa. O cheiro de desilusão sobe misturado à neblina dos cigarros tragados.  O senhor sujo termina sua história e brinda comigo.

Comecei a evitar meu pai, suas palavras de mármore, quando mudei pra cá e me estabilizei. Na época eu gostava apenas de vinho. O velho me ligava e eu retirava a bateria do meu telefone. Arranjou uma namorada dois anos mais nova do que eu. Um dia apareceram aqui na minha porta, como pesadelos persistentes que te perseguem durante a madrugada.

O álcool lambe meu rosto e o meu corpo inteiro, fazendo cócegas nas bochechas e no cérebro. Sinto vida na ressaca.  É mais natural trabalhar assim e responder e-mails, preencher planilhas, participar de reuniões. Tudo à distância. Tudo distante de mim. Os problemas se escondem depois que a rolha sai da garrafa. Gênio etílico. Até o clima fica mais agradável. Pede uma cerveja. Bebe-se para comemorar, para enlutar, para que algo aconteça. O fígado pinga em suor. A pele ganha um tom amarelado. A existência ganha todas as cores. Não importa qual dia seja; todo dia pode ser seu último.

Ligo o rádio e remexo minha bunda nua em cima do sofá. Compro uma planta. Ela morre em oito dias. Bebo uma garrafa de vodca e jogo o vaso pela sacada. Planta voadora. Escuto o vaso preto de plástico espalhar a terra e a planta na calçada. Que merda. Desço e recolho a sujeira. Algumas pessoas passam por ali. Olhares suspeitos. Apertam o passo quando não consigo ficar de pé. Ninguém é melhor do que ninguém. Os caras lá do boteco entendem isso.

O senhor sujo me arranja um cigarro solto. Ele nunca sai dali. Faz parte da mobília como a mesa de bilhar ou a máquina caça-níquel escondida no banheiro desativado. Está fedendo à graxa e fritura. Bebo mais um copo de cachaça para esquecer o cheiro. Criamos uma espécie de amizade que nasce na primeira dose e morre com o fechar das portas de aço.

Ele volta a falar sobre a ex-mulher, mas de algum modo a propaganda na TV está mais interessante. Comercial de cerveja. A alegria só é real quando bêbada. Interrompo o velho e digo: “Um brinde à nossa felicidade”. Ele fica imóvel por alguns segundos. Levanta o copo e conclui: “você é um cara digno”. Reparo que seus olhos se enchem d’água. O que é isso? Já está ficando emotivo? Ele esfrega o rosto com a manga da jaqueta jeans surrada e começa a dizer alguma coisa sobre a filha falecida. Minha bexiga grita e corro pro banheiro. Volto e mudo de assunto.

Caminhamos entorpecidos por noites ingratas. Cães abandonados rasgando sacos de lixo, iluminados pelas lâmpadas laranjas dos postes que presenciam tudo. Os pixos nas portas dos comércios fechados são ignorados pelas crianças com vodca e energético nas mãos. O que mais podemos fazer num lugar assim? O velho começa a cantar Tim Maia. Diz que a ex dele amava Tim Maia. Para de cantar abruptamente. Se despede e aponta para a esquina. “Moro ali perto”. Provavelmente em alguma calçada maltratada. Irei chamá-lo qualquer dia para almoçar em casa e ver se a gente se dá bem sem beber. Os nossos corpos balançam, lutando contra a gravidade. Depois a gente se vê. Sempre há depois.

“Ele morreu”, o dono do boteco diz. “Se matou. Misturou uns remédios com cachaça”. Olho em volta; continuo vendo apenas homens tristes. Não quero ser mais um. Quero outra dose de conhaque. Acho que vou voltar para casa. Não estou me sentindo muito bem. Quando fecho a porta da sala, uma lágrima escapa do meu olho direito. Só uma lágrima.

Ofereci um pouco de vinho para meu pai e sua namorada. Eles se aconchegaram no sofá. Meu pai arreganhou as pernas; era como se fosse dono do prédio inteiro. “O bairro aqui é muito perigoso”, ele disse. Nunca tive problemas. “Tá trabalhando de que?”. Home Office para uma startup. “Sem estabilidade alguma. Devia trabalhar em banco ou prestar concurso público”. Talvez futuramente. “Não tá namorando ninguém?”. Estou focado na minha carreira. “Você precisa arranjar alguém. Você sempre foi solitário. Veja eu, por exemplo...”, sim, tudo bem. Entendi. Quem sabe agora você começa a agir feito homem e ela não te abandona que nem minha mãe?

Os dois foram embora. Acabei não comparecendo ao enterro do meu pai.

Chamo minha última amiga para beber umas cervejas. Ela vem. Cabelo verde e um engradado. Um maço novo de mentolado. A primeira lata a gente vira de uma vez. Furamos a parte de baixo, abrimos um pequeno buraco e então viramos o lacre. A cerveja sai num jato só. Arrotamos e acendemos um cigarro. Bebemos a segunda lata normalmente enquanto desabafo sobre o senhor sujo. Ela tenta me consolar: “nunca sabemos o que se passa pela cabeça das pessoas”. De certa forma, me sinto culpado. Não sei ao certo por quê. É como se eu pudesse ter evitado isso. “A culpa não é sua”, minha amiga responde. “Bebe que passa”.

Continuamos esvaziando as latas até estarmos totalmente chapados. Não consigo desgrudar meus olhos da boca dela. Parece estar mais rosada do que das outras vezes. O contorno dos lábios contrasta delicadamente com a pele branca do rosto. Chego mais perto. Ela percebe. “Você sabe o que penso disso”. Respondo que não me importo e que nunca sabemos o que se passa na cabeça das pessoas. Olha para minha boca semiaberta e ri. A gente se beija.

Na manhã seguinte ela levanta primeiro. Veste a calcinha e o sutiã. Está atrasada para algum compromisso. Durante o dia todo, evito ficar pensando nela. Não repetirei o mesmo erro da outra vez. Foco na ressaca. Tomo um chá de boldo que desce com gosto de segunda-feira. Dez minutos depois, mando uma mensagem para minha amiga. Vamos repetir a dose semana que vem? Ela diz “talvez”.

A semana passa. Deixo tudo preparado. Compro um vinho que ela gosta. Depilo meu corpo inteiro e bebo uma lata para relaxar. Dez horas da noite e nada. Abro mais duas latas. Onze horas e nada. Já estou na sexta lata. Meia-noite ela envia uma desculpa. Diz que saiu com uma garota. Mato a garrafa de vinho em poucos goles. Meus dedos bêbados respondem com todos os insultos possíveis. Não mereço ser tratado assim. Minha casa não é adega. “Eu pensei que você tinha melhorado. Mas me enganei. Não me procure mais”, ela manda. Eu digo que nunca melhorei porque ninguém é melhor do que ninguém, mas ela é pior do que todo mundo. Depois disso nunca mais houve uma resposta.

Durante a noite, sonho com o velho sujo. Estou no corpo dele, fumando um charuto no balcão do boteco. Na banqueta do meu lado, um menino balança as pernas. Veste meias brancas, um shorts azul e uma camiseta listrada. É muito parecido comigo quando eu era criança. O menino me pede guaraná. Pego meu copo de conhaque e dou para ele. Esfrego seus cabelos. “Você está melhor?”, ele pergunta. Digo que não. “Eu gostava mais da gente antes, sabia?”. Sim, eu sei. Desculpa. O menino então implora: “por favor, não me deixa morrer”.

Acordo em prantos.