não sei quanto de nós permanece naquilo que temos. tenho sentido uma saudade distante de algo que não lembro. imagino se neste cobertor usado, esquecido num brechó de bairro, restam os desejos de seu antigo dono. suas insônias, suas lágrimas, suas histórias. talvez reste até a própria morte, grudada entre as costuras, criando ainda mais peso num manto já relativamente pesado. a máquina de lavar quase não aguenta. a água escura que sai de seus canos parece carregar a tinta de um livro inacabado. e apesar do trabalho, do ótimo estado da peça, fico receoso em usá-lo.
mas hoje o tempo esfria absurdamente. um dia inteiro de garoa fina, insistente. um dia de chá, livro e ausência de cores. e quando a tarde acaba, o vento afia suas lâminas para cortar os rostos noturnos. para piorar, estou com o que parece ser uma gripe extraordinária, volátil, que me faz ser apenas um rascunho do que já fui. e agora que se instala os calafrios, e os lençóis finos já não me aquecem o suficiente, retiro o cobertor usado do meu guarda roupa. com minhas dores musculares, a peça ganha o dobro do peso.
demoro a pegar no sono. o nariz entupido me força a respirar pela garganta inflamada. a febre é hostil. os pés congelam. mas o abajur começa a distanciar-se. o barulho do boteco da esquina evapora com o sussurrar das nuvens. fico leve. o corpo oco como uma flauta de ossos. ou uma gaveta vazia. fria. como o mês de janeiro em Monterreal. fria, como as mãos de minha esposa e as palavras do doutor. "hicimos lo mejor".
grito e amaldiçoo. meu corpo inteiro se enfurece. um vulcão expelindo lava e fumaça, explodindo com uma brutalidade animalesca. o suor de ódio encharca minha camisa por baixo do moletom e quase tudo vira uma névoa desesperada. mas minha esposa me aquieta e me acolhe, não me acompanha no lamento. vê-la e observá-la, mesmo que nesta situação, é como amanhecer num campo de margaridas. há uma paz no fundo abismal de seus olhos escuros. logo minha raiva se cala. torna-se algo mais triste, uma despedida.
volto a segurar suas mãos. as minhas, enormes, contrastam com os dedos frágeis, a magreza doente do meu amor. seus cabelos negros e compridos perderam o brilho. seu rosto, antes cheio de vida, agora refletia o inverno, uma árvore seca e sem folhas. com um esforço, a voz escala o peito até os lábios rachados, e num brilho, como se o sol daquele poente nascesse em minha esposa, ela me diz:
"acompáñame, este mundo ya no es tuyo".
amanhece em meu quarto, a luz se estreita pela veneziana de madeira. minha febre se foi, como se ontem não tivesse existido. olho para minhas mãos pequenas, esperançosas. sinto uma vontade inexplicável de gente, de amar, de encontrar a beleza na nossa imperfeição. é como se eu tivesse matado uma saudade, descansasse uma memória agridoce.
retiro o cobertor usado de cima do meu corpo. está leve e macio. parece o manto dos anjos, o riso despreocupado de uma criança. ele flutua em seda e descansa amassado na beirada da cama. então caminho rejuvenescido até o banheiro, como se desse novamente meus primeiros passos.