terça-feira, 24 de dezembro de 2019
BEBENDO UMA COM O PAPAI NOEL
- Sabe - digo a ele, - eu gosto do Natal. Não da ideia em si, mas do jeito que as pessoas ficam nessa época do ano.
- Tudo falso - Noel responde.
- É, mas funciona. Muita gente faz coisa boa pros outros. Esse "espírito natalino" salva muitas vidas. É uma pena que só acontece uma vez por ano.
- Vocês humanos tem uma capacidade limitada para bondade.
Encosto na muretinha onde Noel olha para o infinito da Cohab.
- Ou é que nem mijo - ele continua. - Vocês enchem o caneco de maldade o ano inteiro e aí dão aquela mijada boa no Natal.
- E onde que isso é bom?
- Não é que seja bom; é só o contrário do mal.
- Então a gente não mija, a gente vomita...
Papai Noel me dá um tapa na cabeça. Cuspo a cerveja que eu estava prestes a engolir.
- Caralho, moleque maldito! - ele esbraveja - Você tem a chance de tomar um goró com a porra do Papai Noel e fica aí cheio das filosofias, me contrariando e enchendo o saco!
- Foi Deus quem me deu o dom de pensar. Reclama com ele!
- No niver dele? Tá doidão? Quer que eu perca meu emprego?
- Você é CLT ou PJ?
O rosto dele fica vermelho igual a sua regata. Seus olhos azuis-padrão-europeu perfuram os meus cor de pomba rola.
- PJ - ele resmunga, virando o resto da latinha e derramando um pouco na sua barba branca.
Pego mais duas latas dentro da caixa de isopor (poliestireno, desculpa). O gelo quase que queima minhas mãos. Esfrego uma das latas na minha nuca. Que calor do inferno!
- Vamos virar essas daqui - Noel propõem. - Pega minha faca ali na mesa.
Entrego a faca para ele, que abre um pequeno quadrado na parte mais baixa da lateral da lata. Então ele faz a mesma coisa com a minha e diz para botar minha boca no orifício e abrir o lacre.
A pressão faz com que toda a cerveja saia de uma vez pela abertura da lateral, atingindo meu fígado diretamente. Na metade da lata, desisto e jogo tudo no chão. Papai Noel atira o container de alumínio vazio na minha quebrada.
- Eu ia te pedir um presente - digo meio que enrolando a língua, - mas agora eu esqueci o que eu queria!
- Você tá vivo, seu bosta. Esse é meu presente.
- Mas é ruim, eu não sei viver!
- Se eu te desse um Iphone você aprenderia a mexer nele ou jogaria fora?
- Bem, eu jog...
- É RETÓRICA, SEU IMBECIL! É CLARO QUE VOCÊ APRENDERIA!
- Ah...
- É a mesma coisa com a vida. Não vem reclamar que você não sabe mexer no presente que eu te dei. Aprende, ué! Se vira!
Olho para o horizonte e vejo todos os aplicativos que posso usar. Não entendo nem a metade das suas funções, dos "porquês", dos "comos". A programação da vida é um grande Iphone importado que você dá para o seu Zé da esquina, que tem 85 anos e ainda escuta música no seu radinho de pilha.
- Vou embora, dar aquela trepada com a Mamãe Noel. Vou enfiar minha rena vermelha no trenó molhado dela! Ho, ho, ho!
- Deus me livre de ver essa cena - respondo, observando que ele já está botando suas tralhas pra dentro do trenó. - Ei! Espera aí! Você não tá bêbado demais pra conduzir o trenó não?
- É a magia do Natal, garoto - ele diz, subindo no trenó remendado e chicoteando as renas desnutridas, - o paizinho aqui aguenta fazer tudo ao mesmo tempo!
Uma das renas caga no chão. O veículo decola. Uma pomba passa na frente dele e é decapitada na hora. Entre as penas negras da ave extinta, Papai Noel grita:
- FELIZ NATAL! HO, HO, HO!
sábado, 14 de dezembro de 2019
MEUS AMIGOS ME DEIXARAM
Deixei que fossem.
Questão nenhuma.
Onde estavam há espaço
para novos.
Mas me deixam os novos
também.
Agora posso comprar
Corote amarelo
(o azul faz verde das suas
merdas).
Tantos rostos e pernas
botando a rua abaixo,
botando eu pra baixo...
Ok; culpado.
Tudo não é suficiente
pra manter sorriso interno.
Logo a fronte cai junto
das lágrimas alcoólicas.
Meus amigos me deixaram.
Deixaram
marcas poemas traços.
Não sei o que fazer
com o que sobrou
do meu coração.
Questão? Algumas.
Talvez muitas.
Talvez todas.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
TEMPO RUIM
Só tá chovendo no meu quarteirão.
Pelo vão entre o sonho e a realidade.
E pelo tom do céu, tá chovendo no amanhã também.
Minha camiseta favorita estava
com cheiro de suor
e isso me obrigou
a lavar as roupas que acumulavam no cesto.
O sol tava lá,
todo besta sendo estrela,
enquanto eu botava sabão demais na água.
Estendi a roupa e,
algumas horas depois,
começou a chuva.
Só tá chovendo no meu quarteirão.
O resto da cidade no brilho negro
do asfalto quente.
A esperança e a ingenuidade
engolidas pela boca-de-lobo sedenta.
Minha camiseta favorita está encharcada e
eu perdi a vontade de
fazer algo a respeito.
Só quero deixar
a chuva passar
enquanto tento
não levar tudo tão a sério.
terça-feira, 26 de novembro de 2019
COMO VIVE UM POETA
Trens. Muitos trens.
Boa parte do tempo,
um poeta estará num
transporte público
pensando se deve ou não
vender suas poesias ali.
Não conheci poetas de carro.
Não conheci poetas saudáveis.
Poetas de carro novo e saudáveis
geralmente trabalham na Globo,
e aí o termo fica subjetivo.
Muito tempo em
ambientes fechados.
Isso ajuda na percepção
da vida. Quanto mais deturpada e
negativa for a percepção,
melhor o poeta.
Por isso que existir é uma merda.
Volta pra casa no trem.
Cuidado com o vão entre
você e seu sonho.
Cuidado com a sobra
do dia seguinte.
Cuidado pra não ser
quem você odeia.
Alguns poetas se feriram tanto
que mal conseguem manter
contato visual.
Estão sempre de canto, tentando
perceber o que há de interessante
nas pessoas.
Vivem acumulando falhas, erros.
Pensam demais.
Gastam toda sua energia pensando.
Não sobra nada pra socialização,
a não ser que estejam bêbados.
Aí param de pensar.
Fica mais fácil ouvir as mesmas
coisas de novo e de novo.
"Manda um poema aí!", diz
um macho otário.
O poeta encara o chão,
dá um gole no corote e
vai embora pra casa.
Quase perdeu o último trem.
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
INTROVERTIDO
NÃO ENTENDI O QUE EU QUIS DIZER
UM POEMA BOM
UM, DOIS, TRÊS, TESTANDO
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
DIAS NUBLADOS
caminhar pela quebrada.
Com roupas largas, folgadas,
saio de casa apenas quando
o dia está nublado.
Quando se olha para um mar
de tijolos baianos à mostra
debaixo de um cinza infinito,
percebe-se que não restou
muito pra nós.
Com o tempo assim, parece
que o mundo vai acabar.
Mas ele nunca acaba e
talvez este seja o problema.
Continuo até sentir o suor
das minhas axilas ensopando
minhas costelas.
Então eu volto pra casa e
lavo a louça.
Acendo um incenso “Sete Ervas”
contra o mau-olhado.
Faço carinho nos meus gatos e
vou pro quintal dos fundos
procurar nas nuvens
o sentido disso tudo.
sexta-feira, 11 de outubro de 2019
SE EXPRESSE OU MORRA
Porque roubarão as palavras
de dentro da sua boca.
Dormirão nas camas que
você deseja se deitar,
com as pessoas que
você deseja agarrar
nos lugares que você
quer visitar.
Porque vão calar sua postura,
deletar seus projetos e
rir dos seus sonhos.
Se expresse ou morra.
A vítima é seu potencial e
o silêncio é a arma do crime.
Mesmo que bêbado,
tropeçando sobre calçadas
iluminadas por luzes laranjas e
com o sereno de uma cidade
triste, diga algo, faça algo,
seja tudo.
Não há outra chance.
Não há amanhã.
Não ha escolha além de
existir.
Então exista pra caralho.
terça-feira, 13 de agosto de 2019
FUMANDO UM NO BAR
no minuto que vem, sem que
ninguém diga alguma coisa.
Fico com cara de trouxa,
pensando de boa:
"que caralhos tô fazendo aqui?".
Ela ri. Diz que fui eu quem
acendi, e agora passa a
fumaça pelo pulmão como
oxigênio pelo nariz.
Ah, acho que já fumei demais.
Tenho mais pessoas pra
conhecer e mais coisas
fúteis pra fazer até a galáxia
se desfazer.
Agora não é hora de ser
um buraco negro na
vida dos outros.
Recuso a ponta e ela me afronta
e pede pra por na conta
mais um litrão.
É... realmente não quero deixá-la.
Mais um copo e eu vou embora.
Mais um copo pro mundo afora.
Mais um beijo que demora e que
eu queria agora.
"Tudo bem", digo a ela,
"mas o próximo você bola".
BEIJANDO NA FILA DO BANHEIRO
Descobri a insanidade
dentro de lábios que
babavam os meus.
Vejo o efeito que um sorriso
pode causar numa pessoa e
não é à toa que a hora voa e
toda coisa boa pode caber
dentro de um simples abraço.
Vejo o traço bem gasto
sobre a vida triste que marcou
seu rosto.
Não chore, não tema mudanças,
não desperdice uma dança.
Apenas continue me beijando
até esquecermos do que
estamos nos queixando e,
sério,
tô cagando pro resto do mundo.
Descobri a insanidade aqui
nessa fila de banheiro, sem dinheiro,
o momento certeiro que nos
deixa livres para
sermos quem somos.
Então que sejamos!
TENTATIVA E ERRO
me encaixar nas peças
adjacentes, mas a figura
como um todo não me
parece lá essas coisas.
Pelo menos não enquanto eu
vejo a foto do país.
Eu quero ser diferente,
me expressar com cada
meia que eu visto e
com as jaquetas
da minha mãe e
com o colar da minha amiga.
Eu gosto do estranho,
das entranhas que emanam
e não enganam a ninguém
com contas fakes ou
stories planejados.
Eu fujo do óbvio como
o diabo foge do sóbrio.
Fico eufórico só de
pensar no óleo da minha face
sobre o bico do seu seio esquerdo
(fugi do assunto porque estou
sedento por sexo).
E sim: quero foder esse teu corpo.
Me crucifique. Sou tão mortal
quanto a fé ou seus bisavós
ou a folha no outono
ou o sol daqui alguns anos.
Sou tão mortal e tão normal
que eu desejo coisas simples e
idéias que insistem,
brizas que persistem,
poemas que irritem
aquele que deu palpite.
Eu tento ser qualquer coisa;
nada me apetece.
Só me deixe dizer mais,
até eu calar a minha boca.
terça-feira, 6 de agosto de 2019
COMO AMAR ESTRANHOS
Olhe no espelho, ame o reflexo.
Saia de casa e ame
o dia, seja ele qual for.
O dia em si, incluindo os
fios do poste e o choro mimado
da criança com sono.
Sem amar essas coisas,
é impossível amar alguém.
Sua cortina estava manchada
nos cantos e as flores
na jardineira morriam.
Mas sem foder a mente por
pelo menos um minuto,
não consigo ficar são.
Olhe a casa e imagine o
que está acontecendo lá dentro.
Você poderia ser alguém ali.
Esqueça, e continue seu caminho.
Pegue um transporte público
e sofra coletivamente.
Empatia através da dor, do aperto.
Você amará estranhos quando esquecer
seus vícios, quando escutar suas vozes
mentindo e contando histórias e
chorando e gargalhando.
Você amará estranhos até morrer.
Até que o sol exploda e leve
tudo consigo.
Você vai fugir de estranhos, e
isso também vai passar.
SEM CRUSH
Me apaixonei pelo espaço
na minha cama e agora eu
não quero que ele vá embora.
Mas toda relação é benta em lágrimas.
Enxugo meu rosto e seco a garrafa.
Acho que tô cansado de
abrir minha carteira todo dia e
trancar meus sentimentos
numa gaiola invisível.
Sem crush, sem dor.
Mas olhar pro espelho e
só ver a ti mesmo, com a cara
de um manequim sem rosto,
também é doloroso.
É que tá difícil de confiar
na minha confiança, nas
pessoas passageiras que
querem comprar um assento
vitalício no meu trem da despedida.
Tá difícil de encontrar
“não sei o quê” em “não sei quem”
(nem em mim eu encontro).
Sem crush, sem cores.
Preto e branco na página virada.
O que escrever nas próximas?
quarta-feira, 24 de julho de 2019
NA BORDA DA LINHA
do domingo
e agora estamos
batendo no tédio
com nossas garrafas
de vinho.
Andamos no meio da rua
como trens no horário
de pico.
Você está perto, mas
não o suficiente pra
que eu sinta seu gosto.
Você está perto, mas
é lindo demais a
distância entre nós.
Nós passamos da linha,
e agora ninguém sabe
o que fazer, e todo mundo
faz alguma coisa.
Estive esperando pra te
olhar assim, pra ponta
do seu nariz numa
hora do entardecer.
Pena que toda tarde morre
numa noite.
Você está perto demais,
vinho demais e...
me dá um beijo?
O PREÇO SECRETO
desce pelo ralo.
Por cada "bom dia"
não dado.
O preço secreto
desperdiçado pelos
fatos rasos do
cotidiano.
Tudo o que morremos
sem perceber.
Já imaginou
acordar num mundo
sem você?
Mesmo que a preferência
seja o silêncio,
ou outro litrão,
uma vida perfeita
é impagável,
e o produto, no fim,
descartável.
O preço secreto
das nossas dívidas
com nossas vidas.
O tempo vai cobrar
cada ruga, e cada verme
que roer o músculo
terá uma nota promissória.
MAU HÁBITO
onde foi que a gente se perdeu?
Será que foi numa
dessas calçadas,
bebendo corotinho,
fumando o penúltimo
cigarro do maço?
É difícil dizer...
Mais uma noite que
descontam da nossa conta.
Não tem jeito;
Quando viver vira
agradecer por não
estar no inferno,
o amor vira
seringa usada.
Eu sei.
Amizade vira
maconha bolada.
Eu sei.
Felicidade vira pó
com cheiro de nada.
Deixei.
Deixei o tempo ir,
deixei você ir e
quem ri por último
ri sozinho.
Cadê a saída?
sexta-feira, 7 de junho de 2019
CONSELHO PARA MIM (OUTRA PERSPECTIVA)
"Pare com essa mania de
não se aceitar.
Sua vida tem que ser interessante
ao invés de ser perfeita.
Vidas perfeitas são um chute no cu."
Eu ainda não sei o que sou,
e quero nunca descobrir,
porque descobrir é a melhor parte.
"Seu DNA já é querido pelo universo.
Um em cada 7,6 bilhões.
As chances estão a seu favor
Aproveite."
E agora eu vejo no vício
de cada olho que vomita
opinião que, na moral,
fodam-se as opiniões.
Fodam-se os conceitos.
Fodam-se os padrões.
Essa é minha perspectiva.
Vou espalhar loucura
num mundo insano.
Cada hormónio espatifado
nos postes, atropelados
por carros sádicos.
"Vamos namorar a cidade e
foder gostoso.
A festa já vai começar."
REQUIÉM PARA NÓS
contornando seus traços.
São tão indelicadas
quanto as palavras que
eu te disse da última vez.
Tento lembrar do formato
das suas orelhas.
Passei boa parte do tempo
na sua boca, e agora
não consigo reproduzir
os outros detalhes.
Seus braços balançavam
suavemente enquanto
escutávamos Lana
depois de fumar um
na varanda.
Agora só minha memória
pode te visitar.
Toda briga é inútil;
deixo minha culpa descer
ralo abaixo.
Há outras pessoas pra desenhar
na era mais vulgar de todas.
Deixemos que os padres
rezem por nós dois.
Uma aventura nova me aguarda
nessa boca que me mancha
com batom preto.
O RITUAL
me botar pra baixo.
É por isso que faço
a dança do cachorro atropelado
e mostro meu dedo do meio
pra este idiota do outro lado
do espelho.
Eu o amo, entretanto, então
lhe compro o melhor maço
de três conto no boteco
da esquina.
Sexta-feira, Junho.
Na mesma rua, o mesmo
mercado e a mesma latinha,
só pra começar.
Logo alguém aparece.
Alguém sempre aparece.
Esse alguém vai dividir
um corote ou um cantinho
comigo.
Não vou lembrar do que
conversamos no dia seguinte,
e direi coisas pra este alguém
das quais já disse ontem.
Logo a rua lota;
tem que ficar bem cheia
pra me preencher.
No aconchego das noites fúteis,
passo despercebido como
a pena velha de um pombo.
Vale alguma coisa,
vale mais do que qualquer coisa.
O QUE DIZER NUMA ENTREVISTA DE EMPREGO
Estar aqui por pura
necessidade.
"O que você faz?"
Fodo meu corpo com toxinas
pra sair da minha cabeça.
Fodo com alguém por carência.
Fodo oportunidades porque
talvez eu não as mereça.
"Como era seu antigo emprego?"
Morrer durante oito horas,
comer durante uma.
"Como você se vê daqui 10 anos?"
Me vejo sentado num lindo divã,
com alguém do meu lado,
escutando tudo o que digo e
me receitando um antidepressivo.
"Quais suas ambições aqui dentro?"
Não perder a loucura.
Não deixar que me levem
pra ser soldado numa tropa
de manequins.
"Por que eu devo te contratar?"
Me empreste um isqueiro e
eu fumarei um cigarro
tão maravilhosamente
que será impossível me
dizer não.
"Ok, entraremos em contato"
UMA GAROA A MENOS
muito nisso.
Mas cada garoa que te
irrita, que estraga seu rolê,
é uma garoa a menos
na sua vida.
Não sei se os mortos
reclamam da chuva.
Talvez eles até sintam
inveja de nossas
meias encharcadas
por causa daquela poça
escondida no buraco
do asfalto.
Eu amava reclamar de tudo.
Mas a morte foi comendo
as pessoas ao meu redor e
logo eu percebi que cada
pequena bosta que a
vida despeja em cima da
gente, dá pra reciclar
num poema.
Com essa onda sustentável,
acho que é o melhor a
se fazer.
Chega de desperdiçar garoas.
quinta-feira, 6 de junho de 2019
ATÉ AS FLORES CONSEGUEM
da sala, um quadro do
meu quarto acabou caindo.
Você saiu com tanta pressa
que esqueceu o seu anel de prata.
Eu continuei na cama, olhando
para o teto sem sentir
coisa alguma.
Nada.
Nenhuma vontade.
Só uma irritação na
garganta, um sabor de
ressaca mal-curada e
um looping na minha cabeça
dizendo que eu sou
a pior criatura na Terra.
Talvez eu não merecesse
mesmo este corpo seu,
maravilhoso, chocolate
meio-amargo.
Nem o tempo que você
perdeu tentando me excitar.
Foi mal; vou ficar devendo
estes minutos pra sempre.
Acendo um cigarro e a
fumaça diz que "é normal".
E uma abelha, em algum
lugar deste mundo, está
agora fertilizando uma flor.
PROMETO
tá gemendo baixinho no
meu ouvido,
e eu sinto a vida quente
sobre minha pele, e
o meu corpo enterrado
no seu, parece que
os problemas desaparecem.
Quando você diz que
vai sentar na minha cara
e rebolar na minha boca
até gozar,
todas as dívidas são pagas.
Todas as brigas, perdoadas.
O sol até dá uma curiada
por entre as nuvens da chuva.
Amo o seu cheiro, e
poderia te lamber até
o fim-do-mundo, beijar
cada canto dessa delícia
que você chama de corpo.
Poderia até mamar seus anseios,
penetrar na sua insegurança,
abraçar sua tristeza.
"Foder é divertido,
mas foda apenas com
meu corpo", você diz.
Ok, nada de promessas.
Prometo.
VIOLINO
Anda na chuva, e a capa
de seu violino molha.
Logo menos, as únicas
luzes serão as dos postes,
das vitrines e dos faróis.
Embaixo de um toldo,
as cordas começam
a chorar uma melodia,
a cidade escuta ao fundo,
as gotas caem em silêncio.
Algumas moedas caem
na capa molhada que jaz
aberta na calçada.
A mina tá de olhos
fechados.
Em outro canto, um
cara bate nos pratos e
o bumbo toca o peito
daqueles que estão no porão.
Numa esquina, outra garota
canta ópera. Um cara balança
um saco cheio de latas.
O metrô avisa a próxima
estação. Um grupo
brinda sua cerveja.
O violino é guardado com
carinho debaixo de
umas palavras, tão imortal
quanto um momento, e
agora os prédios apagam
suas luzes pra dar
uma chance ao sol.
ME DESMANCHE
Jogue em qualquer lugar.
Quero sentir sua língua
dizendo "que gostoso",
bem devagarinho, entre
um lábio e outro enquanto
você toma fôlego.
Não precisa acender a luz
porque a janela me dá
permissão de ver seu
corpo com as minhas mãos,
sua silhueta em contraste
com a fria arquitetura
dos prédios ao fundo.
Nosso azul no arrepio
dos pelos do seu braço,
que leva sua mão
até minhas costas,
e suas unhas até minha pele.
A cama te abraça por trás,
eu sigo por cima, por enquanto.
Não consigo parar de te beijar.
Sua respiração encosta
suavemente sobre meu rosto,
e isso me deixa louco,
com vontade de dizer para
a noite que não tenha
pressa de acabar.
No fim, mais duas pessoas
num apartamento
infectado de
gente.
terça-feira, 7 de maio de 2019
O FUMO
mais alguma coisa e
nossos reflexos pelas poças
imundas de São Paulo revelam
olhos dementes loucos irrisórios
aproveitando o agora e
fugindo de todo o resto do tempo.
As bundas ficam coladas
nos bares e
as moças vendem as melhores e
as piores balas do mundo
enquanto a feira de cocaína
rola pelas ruelas da Augusta.
Baladas infernais desmanchando
noites esquecidas
pela embriaguez do bonde.
O fluxo segue os
passos corridos
de quem vem e vai,
caminhando nas alamedas luxuosas
atrás do próximo loló.
Os escândalos angelicais
das migas e migos
com casacos fluorescentes,
quase tão vivos quanto
a chama dentro de
seus corpos tatuados.
Estudantes manifestando
sobre isso e aquilo e aquela
outra coisa que aconteceu e
que foi parar na gaveta dos
jornais nacionais.
Que foi enterrada na lama,
massacrada por oitenta tiros.
Seios e mamilos andando por
aí, com camisas abertas
e mangas arregaçadas.
Uma voz só exigindo igualdade.
Mas estamos ocupados demais
tocando e masturbando
nossas tecnologias.
Minha geração goza em máquinas
e o match é perfeito.
Ficamos nus frente à câmera,
totalmente desprotegidos,
esperando o amor chegar.
Mas todos sabemos
que não passa de
mais uma história, mais
um momento intragável
que pedimos no
bar do China.
Os banheiros gozados
com as mais maravilhosas
porras de pessoas
que cada dia conseguem
ser mais autênticas
e mais orgulhosas de
suas vontades desejos paixões;
seis cores na bandeira hasteada,
colorindo muros da cidade
mais cinza do mundo.
A garoa molha a seda,
molha o tabaco e a paranga.
Molhamos a garganta
com a saliva alheia e
com a bebida alheia,
o cantinho do nosso vale,
o duelo entre sabores
de uma juventude inteira
condenada a ser tão jovem
para sempre.
Sem visão, sem perspectiva
alguma do que pode
acontecer com o aluguel,
a carreira que nossos avós
conquistaram para nossos pais
e que agora nós trocamos
por uma viagem para
o Uruguai, Chile, Irlanda.
A Paulista de pernas abertas
para o domingo penetrá-la
com seu hélio e seus
artistas de rua mendigando
atenção.
O riso inocente da criança
que olha o maluco de estrada
fumando um charuto,
uma verdadeira pica de
maconha, maior que
o braço de um bebê,
dando piruetas e
cantando a ventania
do próprio destino.
Minha geração nasce em máquinas.
A publicidade é perfeita.
Não há um maldito que possa
falar por todos, mas
todos podem falar
por um maldito que
escolheu não eleger
desgraçados que
infestaram o senado e
toda a capital com suposta
ordem e progresso.
Eles não cuidarão de nós.
Nós não cuidaremos de
ninguém.
Somos os filhos rebeldes
do racismo, da homofobia,
da violência, do machismo,
do achismo, do padrão,
da certeza.
Fugimos de casa porque
nossos pais não souberam
o que fazer com suas propriedades,
com seus direitos, com suas
vidas e aposentadorias.
Fugimos de casa porque
casa não é lar.
Nosso abrigo tá no abraço
de algum desconhecido
da rua que olha nos olhos
e diz "é, eu sei".
Nosso abrigo tá na
ocupação de espaço
e tempo, perdendo
cabeças iluminadas
para o abate do
sistema educacional.
Nosso abrigo tá na nova periferia
que atrai turistas do centro.
Que vende o cigarro falso,
o litrão barato,
a vontade de
liberdade, de mudar
as regras do jogo, de
poder errar e errar e errar
até as cicatrizes se acumularem
e nossas almas gritarem
de prazer.
Nós ouvimos Funk, com
"F" maiúsculo de FODA-SE.
Sentamos e quicamos e
rebolamos na cara
de quem acha que caráter
é pessoa recatada.
Temos overdoses cada vez
mais cedo.
Cortamos nossas coxas
cada vez mais cedo.
Temos ataques de pânico
e mergulhamos de cabeça
na depressão da estrada
porque sentimos que
não somos o suficiente
pra agradar os mais velhos,
os mais novos e
os que nem existem.
Minha geração tá perdida,
mas temos GPS e conexão
suficientes para continuarmos
nos perdendo nas biqueiras
dos nossos corres.
Somos o único,
importante,
desesperado,
famélico,
caótico,
poluído,
egoísta,
deprimente,
ansioso,
furioso
futuro da Nação.
domingo, 7 de abril de 2019
CONSELHO PARA MIM
quarta-feira, 3 de abril de 2019
BRISANDO O TEMPO
Lá vem ela, brisa discreta da noite.
Se esfregando pelas sombras até
alcançar meu peito.
Pontada de riso
desabrochando na face murcha
pela semana.
Ninguém sabe de nada,
mas todo mundo
tem certeza de tudo.
Sinto muito, quero só
ver essa silhueta
atrás da cortina do meu quarto,
tentando me seduzir mas
tropeçando nos passos,
dizendo
"Fica pra próxima, hahaha!"
Ela ainda tá aqui,
me atormentando as orelhas,
riscando minhas costas de unha.
Convido-a pra viver
eternamente.
Ela diz que um minuto já
é infinito.
Porra, só fui perceber agora!
Eu tava preso no futuro,
ela saltitando pelo presente.
Não nos encontramos a tempo de
andar pela mesma linha.
quinta-feira, 28 de março de 2019
SEXO MEIO NIILISTA
com dedos enxarcados e
pulmões ofegantes,
a rotina de merda que
tivemos antes
não importa.
Nada mais importa.
Posso sentir o dia inteiro
saindo de você
nesta noite.
Estamos gemendo sons
sem significado para
o universo.
Mas, agora, a
marca da minha mão
na sua bunda significa
muita coisa.
Eu te levanto pela
cintura com braço
firme. Mordo seu
pescoço e puxo
seu cabelo.
Olho no seu olho.
Encaro o abismo
dentro de nós.
Eu o chamo para ser voyeur.
Chupo você completamente,
frente e trás, enquanto
seus dedos se prendem
em minha cabeça.
Seu gozo não é nada vazio.
Amanhã talvez seja.
Quem liga agora?
quarta-feira, 20 de março de 2019
A DANÇA DA FUMAÇA DO MEU ÚLTIMO CIGARRO
Eu mexo o cigarro aceso
pra que a fumaça
o acompanhe enquanto
minha coluna beija a cama e
meu rosto encara o teto e
minha mente pensa no
metrô, no centro da cidade
na garoa, à noite.
Não há muito mais do que isso.
Não precisa ter.
Só um cara da periferia,
no seu quarto,
fumando seu último Eight.
Há tanta arte alí que eu
nem me atrevo a enfeitar
a cena com sentimentos.
Você sabe o que ele tá sentindo.
Você também é
bicho urbano.
sábado, 16 de março de 2019
O MESMO RELACIONAMENTO COM PESSOAS DIFERENTES
Essa sua cara já diz tudo.
Já fala como acaba o mundo.
A gente não se olha mais,
não conversa mais,
não se fode mais,
mas
há um pouco de esperança.
Quem morreu por último
sorriu primeiro.
Novos ares, outros encontros,
recomeços e desencontros
mas
cê ainda tá lá em cima.
Meu pensamento pensa em você.
Nas palavras que não dissemos.
Eu só queria saber se
vai rolar
da gente se encontrar
pra simplesmente rachar
o mesmo litrão da primeira vez.
E eu sei que tenho seu não,
mas não custa perguntar
dessa vez.
É só pra variar,
porque das outras vezes
não perguntei.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2019
ANSIEDADE É UMA BOSTA
como datilografia.
Velho coração
emputecido
pelo toque da mão
na maçaneta do portão.
Tento respirar
em pausas.
Paro dez vezes e
agonizo quinze.
As vozes da rua
chamando o dia
pra morrer na tarde
no funeral da noite,
até que tudo
esteja morto.
Só preciso
sair de casa.
Cérebro empapado
de pensamento inútil.
Mil imagens nos olhos.
Milhões de tragédias.
Bilhões de gente.
Nenhuma solução.
Enfio a chave na
tranca enferrujada e
torço meu pulso.
Sepá eu fico melhor.
OS GATOS SABEM
em meu rosto,
o gato pula no meu colo
e faz dele sua cama.
Me atravessa com
os olhos felinos.
Ele sabe, eu sei.
O que mais saberemos?
"21 de Janeiro e
nesta semana tem feriado",
eu digo.
"O medo é ilusão",
ele responde.
"Cerveja quente dá caganeira",
eu digo.
"Em 100 anos, toda sua história
estará morta",
ele responde.
"Ganho menos que o mínimo",eu digo.
"Me alimente, humano patético",
ele responde.
Esfrega o rosto
nos meus dedos
amarelos de nicotina.
Do quarto à cozinha,
costurando minhas pernas
até que o primeiro grão
da ração caia em seu
potinho.
Aí ele me ignora.
Ter vida é como ter gato;
faça seu melhor
até ser esquecido.
Mas tá ok.
Gatos são fofos,
vidas são maravilhosas.
RELACIONAMENTO VIOLÃO
quinta-feira, 10 de janeiro de 2019
MAIS UM DIA
Porque aqui tá um saco.
Tô preocupado de ser cobrado
e ter que pagar
ficando parado.
Meu isqueiro tá sem gás.
Meu dinheiro ficou pra trás,
nas mãos de um alguém
onde "nãos" se reproduzem.
É fácil perder o rumo
neste mundo onde
o sujo faz pior que o imundo.
Mas certos costumes eu não mudo.
Não, eu não fico mudo
quando há algo pra
colar na sua cara.
Minha mente se prepara;
carrego os versos e
a poesia dispara.
Andando, cansado,
abordando desavisado.
Mais um dia da via infinda.
Mais um cigarro pra descolar trocados.
Muito obrigado.
JOGAR CONVERSA FORA
Os meus dizem aos seus,
nos passos ansiosos da avenida,
que eu quero te botar
num poema.
Gosto de ver que você
me viu também.
E o meu dia estava tão esquisito.
Já se fora quase um maço e
ainda nem é noite.
Mas nesse momento,
nessa conversa que
só a gente sabe que existe,
sinto que eu posso ficar sóbrio.
Sóbrio pra degustar tudo
o que poderia ser nós dois.
Pena que, porra, cê tá subindo
e eu descendo.
E ninguém teve coragem
pra falar com o corpo inteiro.
Jogamos a conversa fora,
os olhares se perdendo,
espalhados pela calçada.