Numa laje aqui da quebrada, abro a terceira lata. Noel está na quinta.
- Sabe - digo a ele, - eu gosto do Natal. Não da ideia em si, mas do jeito que as pessoas ficam nessa época do ano.
- Tudo falso - Noel responde.
- É, mas funciona. Muita gente faz coisa boa pros outros. Esse "espírito natalino" salva muitas vidas. É uma pena que só acontece uma vez por ano.
- Vocês humanos tem uma capacidade limitada para bondade.
Encosto na muretinha onde Noel olha para o infinito da Cohab.
- Ou é que nem mijo - ele continua. - Vocês enchem o caneco de maldade o ano inteiro e aí dão aquela mijada boa no Natal.
- E onde que isso é bom?
- Não é que seja bom; é só o contrário do mal.
- Então a gente não mija, a gente vomita...
Papai Noel me dá um tapa na cabeça. Cuspo a cerveja que eu estava prestes a engolir.
- Caralho, moleque maldito! - ele esbraveja - Você tem a chance de tomar um goró com a porra do Papai Noel e fica aí cheio das filosofias, me contrariando e enchendo o saco!
- Foi Deus quem me deu o dom de pensar. Reclama com ele!
- No niver dele? Tá doidão? Quer que eu perca meu emprego?
- Você é CLT ou PJ?
O rosto dele fica vermelho igual a sua regata. Seus olhos azuis-padrão-europeu perfuram os meus cor de pomba rola.
- PJ - ele resmunga, virando o resto da latinha e derramando um pouco na sua barba branca.
Pego mais duas latas dentro da caixa de isopor (poliestireno, desculpa). O gelo quase que queima minhas mãos. Esfrego uma das latas na minha nuca. Que calor do inferno!
- Vamos virar essas daqui - Noel propõem. - Pega minha faca ali na mesa.
Entrego a faca para ele, que abre um pequeno quadrado na parte mais baixa da lateral da lata. Então ele faz a mesma coisa com a minha e diz para botar minha boca no orifício e abrir o lacre.
A pressão faz com que toda a cerveja saia de uma vez pela abertura da lateral, atingindo meu fígado diretamente. Na metade da lata, desisto e jogo tudo no chão. Papai Noel atira o container de alumínio vazio na minha quebrada.
- Eu ia te pedir um presente - digo meio que enrolando a língua, - mas agora eu esqueci o que eu queria!
- Você tá vivo, seu bosta. Esse é meu presente.
- Mas é ruim, eu não sei viver!
- Se eu te desse um Iphone você aprenderia a mexer nele ou jogaria fora?
- Bem, eu jog...
- É RETÓRICA, SEU IMBECIL! É CLARO QUE VOCÊ APRENDERIA!
- Ah...
- É a mesma coisa com a vida. Não vem reclamar que você não sabe mexer no presente que eu te dei. Aprende, ué! Se vira!
Olho para o horizonte e vejo todos os aplicativos que posso usar. Não entendo nem a metade das suas funções, dos "porquês", dos "comos". A programação da vida é um grande Iphone importado que você dá para o seu Zé da esquina, que tem 85 anos e ainda escuta música no seu radinho de pilha.
- Vou embora, dar aquela trepada com a Mamãe Noel. Vou enfiar minha rena vermelha no trenó molhado dela! Ho, ho, ho!
- Deus me livre de ver essa cena - respondo, observando que ele já está botando suas tralhas pra dentro do trenó. - Ei! Espera aí! Você não tá bêbado demais pra conduzir o trenó não?
- É a magia do Natal, garoto - ele diz, subindo no trenó remendado e chicoteando as renas desnutridas, - o paizinho aqui aguenta fazer tudo ao mesmo tempo!
Uma das renas caga no chão. O veículo decola. Uma pomba passa na frente dele e é decapitada na hora. Entre as penas negras da ave extinta, Papai Noel grita:
- FELIZ NATAL! HO, HO, HO!