segunda-feira, 28 de outubro de 2024

DEPRESSÃO

eu não quero nada
querer é sintoma de vida
e estou tão vivo
quanto a ferrugem do portão

uma garoa fina e insistente
se espatifa no asfalto
pesadelo molhado
concordo com as gotas

sabe, antes eu gostava
agora é mal hábito
entenda alguém
pelo conteúdo de seu
cinzeiro

vou da cama pro sofá
do sofá para o chão
do chão eu não passo
faço do resto do dia
uma canção sem letra
nem melodia
apenas a batida
de um coração teimoso

vai ver ele sabe
de algo que não entendo
vai ver só sou feliz
quando não penso

de qualquer forma, cá estou
com a mão no queixo
encarando átomos nus
enquanto meus fantasmas se divertem.

LUZES DA CIDADE

vomitei na esquina
um gosto de memórias
na língua

acho que nem um cigarro ajuda

passos dementes
de gente doente
de alma

luzes da cidade
cegando encontros
sua felicidade não me convence
sua insobriedade é real
cabe numa garrafa

tudo na cidade é quase cinza
e quando amam
seu amor não tem cores
é branco como uma folha sem criatividade
e preto como um quarto solitário

perdi seu contato
hoje vou chupar um buraco
desconhecido
não há conhecidos quando
todos escondem sua loucura

a minha tá gorfada na calçada
do lado de um maço de Eight
embaixo de um poema pichado

SUPERAÇÃO (DEFINIÇÃO)

o ato de acordar cedo em sonhos
luta vasta 
arrastando a carcaça ainda funcional

deixar para trás 
velhas imagens de você
refletir futuros no agora

não te esquecer
mas te lembrar
sem dor

o para sempre que não dura 
uma chuva
brincar em suas poças

desencaixar um pedaço seu
dado por outro
que já não te cabe mais

manter a vida acesa
mesmo no escuro 
do fundo do peito

levantar da cama
hoje
e amanhã

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

QUERER É SINTOMA DE VIDA

quero vomitar alegria
mente vazia
ressaca de mil flores
pensando hoje 
como se hoje fosse o dia
vestindo verídica fantasia
trazida do fundo da amígdala
aquela que gozava medo
para todo o aparelho
cerebral

quero ser normal
tão normal quanto a existência
petiscar seus absurdos
arrotar lá do fundo
uma canção especial

quero que me acompanhem
quem já está do meu lado
mas também quem for improvisado
encontro o acaso
e lhe peço um cigarro

era Eight
(caralho)

estendo a mão e vamos
todas as versões apaziguadas
flertando com seus traumas
quem sabe assim a alma acalma
cala
não dá pala
fala
o que as paredes fingem ouvir

quero
ainda quero
e querer é sintoma de vida.

NÃO É SOBRE MIM

você não consegue ver?
desculpa
não é sobre mim
falar sobre você.

tive tontura quando
vi por seus olhos
e uma dor como o mundo

deixar pra lá
é me dar um abraço
quero você no meu mar
você faz meu mar
gotejar nas flores do jardim

toque minha luz
e eu descrevo seu escuro
como se pudéssemos nos ver
mais uma vez

desculpa
é que eu ainda não te esqueci
não me ofende ser imperfeito
e cair no buraco que cavei

desculpa
me desculpa
eu sinto muito.

MINHA DISTÂNCIA DE MIM

não desvaneça na noite
confie no justificar
das estrelas
eu só inventei algumas realidades
meus segredos seus segredos
são suficientes para as lágrimas
eu quero minha distância de mim
como todos aqui que dizem adeus

escutei anjos na viela
num jogo de tentar me quebrar
quero ver até o final
e poder te segurar os cabelos
enquanto gorfamos
mas não posso te ajudar
se você já quer ir embora

confie no justificar
daquilo que acho precioso
transpassando nosso imediatismo
meus segredos seus segredos
fluem pelo tentar dos olhos

eu quero minha distância de mim
e você não quer me levar embora
não vou te arrastar

então adeus
adeus

ANTES QUE SE QUEBRE POR COMPLETO

seu rosto no meu
como foi que consegui?
música da sua voz
vício em te ouvir

tento alcançar o que está
só no alcance do seu peito

seguindo a distância
trocando pedaços antes
que se quebre por completo
e nossa melhor parte
esteja morta

não pare agora
que é a primeira vez
que me sinto dentro
de onde queria entrar

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

EU NÃO QUERO IR EMBORA

não agora que me desencontrei.
fugi das memórias 
no tempo de um trago.
tá meio insalubre
mas tá bom.

não conheço ninguém aqui
nem a pessoa que sou.

eu não quero ir embora.
agora que a gente se sorriu.
agora que a gente se deu uma chance
de escutar um ao outro
sem esperar
nossa próxima fala.

vamos ficar mais um pouco.
próxima rodada de desabafos
e uma oportunidade
de não sermos tão líquidos
evaporando na pressa do desapego.

agora, que guardamos
as máscaras na mochila
e estamos de cicatrizes
gargalhando nossas dores.

não vá.
eu sei que amanhã
seremos estranhos conhecidos.
deixa eu aproveitar mais um pouco
o meu gostar da sua companhia
já que depois
nos evitaremos.

eu...
eu só não quero ir embora...

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

PATRIMÔNIO

tenho quinze reais 
em moedas de cinco e dez centavos
quatro cigarros
meio corote
e uma saudade

tenho metade de uma
linguiça calabreza
um pote de arroz de ontem
dois limões
e tédio

também tenho meio quilo
de ração para as gatas
alguns poemas ridículos
um sonho teimoso
e medo quando apago a luz

sobrou meio tomate
um gosto musical esquisito
um punhado de alho frito
e indagações sobre tudo

acho que é só
pode trazer alguma coisa
se você quiser

tem espaço na geladeira

terça-feira, 8 de outubro de 2024

VOU MUDAR VOU MUDAR VOU MUDAR

vou trocar as músicas que escuto
pra mudar quem eu sou
vou botar o sofá em outro canto
vou pintar o cabelo
fazer exercícios e comer mais couve

veja como serei
uma nova pessoa
uma nova pessoa

vou vender minhas fantasias
e esticar minha pele
vou ler novos livros do sebo
e puxar assunto com estranhos

veja como serei
uma nova pessoa
uma nova pessoa

vou fumar cigarros mais caros
e só beber cerveja puro malte
vou vestir meia preta na canela
e camisa florida
não vou me apegar à ninguém
vou lavar a roupa de cama
toda vez que alguém insistir
em deixar seu cheiro comigo

veja como serei
uma nova pessoa
uma nova pessoa

vou deixar de ser quem sou
pra me arrepender menos 
quando olhar pro espelho
pra me arrepender menos
quando estiver de ressaca
pra me arrepender menos
quando deixar outras mãos no meu volante

é
vou ser totalmente diferente
pintando as paredes da minha casa
e costurando desenhos na pele
ninguém vai me reconhecer
nem mesmo eu

veja como serei
uma nova pessoa
uma nova pessoa

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

TRAUMAS

lembro meus traumas
e jogo dominó com eles
bebericando e empesteando minha sala
com quatro mil substâncias químicas.

"acho que preciso escrever"

fico nu diante da página em branco
que deseja faminta minhas palavras
e brocho.

volto pros meus traumas.
tento achar os culpados
dessa inexistência que persiste
fincada nos meus pensamentos.

a poeira que meus defeitos trazem à mesa
eu espano todo dia
com uma ferramenta feita de mentiras.

"eu preciso escrever agora"

fico burro diante da página em branco
e escrevo quatro palavras rápidas
como se fosse fácil deixar
a alma podre dizer o que sente
sem se esconder atrás de uma garrafa.

guardo as peças do dominó
e vou dormir.

"amanhã será diferente",
eu repito pro travesseiro
pela décima vez consecutiva.