quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

VOLTA

eu parei de fumar.
a bebida acabou e
rasgando as paredes sinto
saudade do mofo.

não sei o que faço de almoço.
não sei com qual cor eu pinto
o fundo do poço.

um moço gritou no meu portão
tentando vender agulhas.
eu disse que não.
já sou parte da minha bagunça.

ele nem se despediu.
acho que educação é um luxo
ou sorte.
não que eu me importe mas
vou pensar sobre isso
enquanto morro em compromisso
de uma sede molhada
ou da minha pele abandonada.

eu parei de fumar.
não sei se volto a beber
se volto a foder
ou se paro de pensar em você
toda vez que lembro
dos meus vícios.

na minha casa não tem TV
eu assisto as janelas
as linhas paralelas
os segredos das vielas...
fecho a cortina.
acho que a vida ficaria mais bela
se eu ainda tivesse ela;

a merda da nicotina.

EU PENSO DEMAIS

pensei tanto 
que muito da vida só vi com os olhos
nem escutei seus passos;
os relógios giram tão depressa
que parecem parados.

de qualquer jeito o mundo acaba
frases-nada serpenteiam o cérebro
comem a própria cauda

eu penso demais
entro em guerra com a minha paz
eu vejo de novo e de novo
velhos desaforos
reflexos intrusivos
falas do espelho que convivo
nada rima quando todo som
parece um grito

o ruído é imenso, coça o ouvido
o meu pedido é manso, que eu possa
ser silêncio
ou ser a voz que vem do fundo
a chama que mora em todo mundo
que agora seja a hora
aurora dos minutos investidos
num futuro já esquecido

eu penso demais
pensar é só uma ferramenta
para montar destroços
mas agora eu sei que posso
esperar a pressa dos relógios
no tempo de um humano tentando 
continuar melhorando
o fio de mente que lhe pertence.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

A CURA É DOLOROSA

olhos fechados à feiura do dia
garrafa que se esvazia
em demasia limpa a rachadura
a queimadura por chamas alheias
as cicatrizes mais felizes
são invisíveis
por mais estranho que pareça

acho que não gosto de você
mas gosto do jeito que você me vê
vendo assim sou cego comigo
ou talvez eu tenha me visto
o bastante pra ser discrepante
o que sinto que mereço
e o pouco que me deixo

olhos abertos às ranhuras do disco
a canção se repete no pior verso
naquele que escolho estar só
sem ter ninguém por perto
tenho um cérebro linguarudo
e um coração surdo
uma alma esfarelada
um corpo com vontade de tudo

a verdade é rara e fácil de esquecer
a cura é dolorosa
mas tudo nessa vida vai doer
e agora, fazer o quê?
vou aceitar ser o ouriço
que pra se esquentar
se machuca em outros espinhos.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

NÃO TENHO RESPOSTAS

eu não sei o que fazer
não tenho respostas
só perguntas
só dúvidas e dívidas
um grande montante de pequenos problemas
que se acumulam
e me enlouquecem aos poucos
como uma infiltração
numa parede morta

não sei se bebo
se volto a fumar
se volto a foder
ou se tento mais uma vez
esquecer você

não, não tenho jeito algum
tô tão perdido 
perdendo meus ganhos
pro tempo
pras minhas preocupações
e minha juventude
descendo pelo ralo junto
da cerveja

mas eu tô aqui
e me recuso a sair
enquanto o meu rosto não sorrir
aquele mesmo riso
de quando eu sabia
que o meu mundo era meu.

QUE NÃO FALTE CORAGEM (PRA SER QUEM SE É)

eu queria te encorajar
e ao mesmo tempo ter coragem
mas sou medroso quando encaro
minha ansiedade

queria tranformar tudo o que sinto
numa resposta
mas talvez eu nem saiba
qual é a pergunta

eu sigo em frente
porque adiante
é sempre a direção correta
(disse o tempo)

mas e se eu quiser errar um pouco?

a vida é bela mas
a minha beleza se compara
aos fios dos postes
e a miséria das calçadas
sufocadas por um céu azul de verão

talvez eu queira que minha história
seja sobre mim
e não sobre o que querem que eu seja
sobre qual corpo nasci
sobre meus pais ou
quem levou algum pedaço cardíaco
do meu peito

eu queria te encorajar
mas tô perdido também
talvez este "também"
te traga acolhimento
te faça algum bem

no mais
desejo que não falte coragem
para sermos quem realmente somos.

UM BRINDE À PORRA DA SOLITUDE

um gole por você
desce mais doído
do que vidro

um gole por mim
é só mais um gole
quem bebe comigo
se bebe e me esquece
um pouco antes da ressaca

eu vou pra esses lugares
pra ver essas pessoas
meio que existindo
meio que cumprindo um papel
não sei quem é ator
e quem é personagem
eu piso no teatro
sozinho novamente
num monólogo fantástico
ecoando no palco
do meu crânio

até que as estrelas flutuem
no esquecimento coletivo
quem somos nós?
quem é você?
foda-se você.

um gole por mim
é o que mereço
sozinho novamente
sozinho
sozinho como meus espelhos
sozinho de novo

NÃO SE ESQUEÇA DE VOCÊ

me disseram e agora digo
repito ao infinito
para você
criatura ante o abismo:

não se esqueça de você

sua mão se estende
você mente
tem de ser forte de repente
uma alma sem músculos
carregando o peso do mundo

te precisaram mas na prática
poucos escutaram
o peso salgado de suas lágrimas
vê se daqui em diante

não se esqueça de você

pois dessa sua vida
você é a única via
a parte mais vital da maquinaria
olhe a menina dos seus olhos
e veja! veja! 
quem esteve ali para sofrer
todas as suas dores?
faça-te mil favores!
levante-se
pegue suas coisas e
pelo amor

não se esqueça de você

JORNADA CINZA

um dia acordou e era só.
o mundo era mais cor de asfalto.
seu corpo estava mais pesado.
tinha de se livrar
de partes de si
para continuar.
livrou-se primeiro da inocência.

o ar era duro, pontiagudo,
cortava a garganta do âmago.
começou a suar nicotina
e se hidratar com álcool.
e com o álcool ficou
na saúde e na doença.
mas seu corpo ainda era pesado;
livrou-se de sua presença.

nada era igual ao que via
refletido nas poças de óleo.
todos eram melhores.
todos os outros seres demonstravam
sucesso.
e com o corpo já desfigurado,
livrou-se de sua estima.

desperançosa e podre,
a criatura rola uma pedra
morro acima
todos os dias.
lá no topo outra criatura melhor posta
lhe dá migalhas do lixo e
empurra a pedra morro abaixo.
isso se repetia enquanto o sol
murchava atrás da fumaça.
para facilitar o ritual,
livrou-se de sua liberdade.

em certo ponto 
a criatura desapareceu.
alguns disseram vê-la
dando nó numa corda.
outras a viram sorrindo 
pela primeira vez.
já alguns raros encontraram
rabiscos em papéis amassados
onde a criatura costumava dormir.

mas a verdade é que
poucos se importaram.
continuaram suas caminhadas
como tinha de ser.
sem olhar pra trás
ou, 
mais importante,
pros lados.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

EU ODEIO POESIA

eu odeio
poesia pra quê?
pra quê?
inútil como eu
eu odeio poesia
inútil inútil
não dá dinheiro
não dá respeito
não dá um jeito no mundo

bosta bosta bosta
eu odeio poesia
foda-se a arte
a arte que morra
e que leve consigo
tudo que nela grudar
como amor alma humanidade

eu odeio poesia
eu detesto
tenho nojo
poesia que sou
odeio
inútil que sou
odeio
esqueço 
apago estilhaço
poesia merda
merece esgoto o ralo da vida
poesia de merda
odeio poesia
tanto quanto você
seu cárcere de liberdade
poeta livre pra odiar poesia
eu odeio à nós
tanto quanto você
e a sua arte sua parte
o que nos faz
eu odeio e volto a amar
tanto quanto você

AGORA ACABOU-SE

agora acabou-se.
já passou.
a coisa tá feita.
feia verdade
corre na veia do tempo.
é com tinta
que escrevemos
nossa história.
guarde a borracha
para as solas
do seu calçado.
ainda há de se gastá-lo
no áspero caminho
que te for empurrado.
se não quer este,
mudar para o outro 
exige mais esforço.
e se for teimoso,
parar como uma bigorna
ao lado da pedra
é só um desperdício bobo
uma pausa separada
pra quem chora
mais por dentro
do que por fora.

eu choro os dois,
mas prefiro fazê-lo
silenciosamente
molhando os ácaros 
no meu travesseiro.

mas agora acabou-se.
passou depressa
como todos os anos
que não lembro.

A VERDADE É FÁCIL DE ESQUECER


sobrevivo ao que não posso
costuro meus destroços
com arame e 
colo meus pedaços com ouro
as cicatrizes mais felizes
são invisíveis

eu poderia ser como você
e ter uma vida de mentira
mas eu sangro quando o gato me arranha
ou quando não gosto de mim

tenho um cérebro linguarudo
e um coração surdo
uma alma de pele rasgada
um corpo com vontade de tudo

escute o que grita no fundo de você
a verdade é rara e fácil de esquecer
a cura é dolorosa
mas tudo nessa vida vai doer
fazer o quê?
o jeito é caminhar e aprender

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

QUERER NÃO É ESCOLHA

alguns queriam me destruir e eu também
o dia renasce melhor pra quem faz o bem
mas o que seria o bem se não fôssemos egoístas?
só entende da vida quem já viveu
me entendo aos poucos e esqueço
levanto às três pra não ser ninguém

queriam que eu fosse embora e eu também
partes de mim que estão com você
por favor me devolva
não aguento mais me dividir por zero
se quiserem meu corpo eu também quero
e se fingem interesse eu vou pra cima
mas nada nessa rima se alinha

queriam meu sorriso e eu chorei
levanto às duas não sei por quê
acho que nunca mais dormi depois que acordei
dizem isso e aquilo e eu prefiro ficar calado
é meu direito sumir no silêncio
só fala quem quer ser escutado
venha me ver sou bom ouvinte
escuto músicas que ninguém conhece
nem mesmo quem às fez

queriam me ouvir e eu queria alguém
mas todos querem os outros
e agora eu já tô bem
quem sabe ano que vem?