sexta-feira, 30 de setembro de 2022

CAMINHANDO PELAS RUAS

é impossível ser feliz na cidade
sem cobrir os olhos
e tapar os ouvidos.
dando resposta
a quem pergunta
de mãos estendidas
expondo feridas
sem moeda alguma.

é impossível ser feliz na cidade
se importando.
é por isso que tantos
estão se exportando.
tão cagando pra quem tá ganhando
votos comprados
com poucos trocados
que ficam nos mercados
de caixas estufados
e carrinhos vazios.

caminhando pelas ruas
eu vejo os picos lotados.
queria a mente vazia
mas hoje vou enchê-la de brisa
porque o goró tá mais barato
na esquina da desesperança.
gastando litros
em busca da liberdade
pagando fiança.
meu cárcere é privado
ninguém é bem-vindo
na minha ignorância.

tem muito de mim que não posso vender.
mas o que posso eu troco
por mais tempo pra beber
entorpecer e fugir.
me pediram ajuda
eu ofereci um copo de fuga.
sumiu pra próxima luta.
essa guerra nunca acaba.
você contra seus demônios
e os demônios dos outros
que saem de vez em quando
para arruaçar seus entretantos.
somos apenas humanos
que sabem que sabem
mas não sabem tanto.
pensamentos de má qualidade
aflorando inutilidade.
a bondade e a maldade
passando fome no semáforo.

é impossível ser feliz na cidade
e você pode correr pro campo
mas nunca de você mesmo.
o que você aprendeu
caminhando pelas ruas?

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

SONHO DE DESPEDIDA

não sei quanto de nós permanece naquilo que temos. tenho sentido uma saudade distante de algo que não lembro. imagino se neste cobertor usado, esquecido num brechó de bairro, restam os desejos de seu antigo dono. suas insônias, suas lágrimas, suas histórias. talvez reste até a própria morte, grudada entre as costuras, criando ainda mais peso num manto já relativamente pesado. a máquina de lavar quase não aguenta. a água escura que sai de seus canos parece carregar a tinta de um livro inacabado. e apesar do trabalho, do ótimo estado da peça, fico receoso em usá-lo. 

mas hoje o tempo esfria absurdamente. um dia inteiro de garoa fina, insistente. um dia de chá, livro e ausência de cores. e quando a tarde acaba, o vento afia suas lâminas para cortar os rostos noturnos. para piorar, estou com o que parece ser uma gripe extraordinária, volátil, que me faz ser apenas um rascunho do que já fui. e agora que se instala os calafrios, e os lençóis finos já não me aquecem o suficiente, retiro o cobertor usado do meu guarda roupa. com minhas dores musculares, a peça ganha o dobro do peso. 

demoro a pegar no sono. o nariz entupido me força a respirar pela garganta inflamada. a febre é hostil. os pés congelam. mas o abajur começa a distanciar-se. o barulho do boteco da esquina evapora com o sussurrar das nuvens. fico leve. o corpo oco como uma flauta de ossos. ou uma gaveta vazia. fria. como o mês de janeiro em Monterreal. fria, como as mãos de minha esposa e as palavras do doutor. "hicimos lo mejor".

grito e amaldiçoo. meu corpo inteiro se enfurece. um vulcão expelindo lava e fumaça, explodindo com uma brutalidade animalesca. o suor de ódio encharca minha camisa por baixo do moletom e quase tudo vira uma névoa desesperada. mas minha esposa me aquieta e me acolhe, não me acompanha no lamento. vê-la e observá-la, mesmo que nesta situação, é como amanhecer num campo de margaridas. há uma paz no fundo abismal de seus olhos escuros. logo minha raiva se cala. torna-se algo mais triste, uma despedida.

volto a segurar suas mãos. as minhas, enormes, contrastam com os dedos frágeis, a magreza doente do meu amor. seus cabelos negros e compridos perderam o brilho. seu rosto, antes cheio de vida, agora refletia o inverno, uma árvore seca e sem folhas. com um esforço, a voz escala o peito até os lábios rachados, e num brilho, como se o sol daquele poente nascesse em minha esposa, ela me diz:

"acompáñame, este mundo ya no es tuyo".

amanhece em meu quarto, a luz se estreita pela veneziana de madeira. minha febre se foi, como se ontem não tivesse existido. olho para minhas mãos pequenas, esperançosas. sinto uma vontade inexplicável de gente, de amar, de encontrar a beleza na nossa imperfeição. é como se eu tivesse matado uma saudade, descansasse uma memória agridoce.

retiro o cobertor usado de cima do meu corpo. está leve e macio. parece o manto dos anjos, o riso despreocupado de uma criança. ele flutua em seda e descansa amassado na beirada da cama. então caminho rejuvenescido até o banheiro, como se desse novamente meus primeiros passos.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

SOBRE JOGAR TUDO PRO ALTO

joguei tudo pro alto.
perdi muito.
apostei tudo.

ganhei-me.

caminho pelo cotidiano
sorrindo a poeira
de ter ficado
tanto tempo
trancado nos meus medos.

agora sinto o sabor
da orgia entre a vida
e o tempo.
o suco de dois conceitos
me aparam pelo resto dos dias.

eu
sou
o acaso.

tornei-me
a soma das minhas escolhas.
e vendo a liberdade no espelho
no vidro nítido dos meus olhos
acredito que
acertei em cheio.

assim me despreocupo
de precisar ser
o que não sou.
assim me desacorrento
das tarefas inúteis
porque agora tudo é útil
tudo me faz.

meu túmulo terá orgulho de mim.

o que joguei pro alto
agora voa livre pelo vento.
e
de certa forma
eu também.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

ESPANHOL

observava a tinta da parede
envelhecer junto aos meus sonhos
quando um homem passou
do lado de fora
falando em espanhol.
não vi seu rosto
sua alma
sua bunda.
só sua língua enrolada
falando "pero sí, pero no".
a porta da sala ocultou
sua figura 
agora tão misteriosa
quanto a própria morte
ou o amor pelas coisas.

é provável que nunca saberei
o que este homem
fazia aqui nas margens
da cidade.
é provável que ele nunca leia
meus poemas
e muito menos este daqui.

ele seguirá falando
mentiras em espanhol
sem saber que escutei
parte delas.
e eu
continuarei sóbrio
até a próxima rodada.

TE USARAM DE NOVO

usaram seu tempo
a areia da pele
o afeto das palavras.

te usaram de novo.

você diz
"sentimento bobo.
eu só me fodo.
eu vou passar é o rodo
no mundo todo
pra ver se encontro
de mim um pouco
o fogo 
que quase se apagou
em braços mentirosos".

te comeram e te cuspiram.
vomitaram desperdícios
confianças de amigos.
sobrou o gosto do reciclado.
os cacos do coração quebrado
rasgando invisíveis os lábios
chorando fartos
de tanto fardo
tão cansados
de serem usados.

te deixaram no lixo
mas não foi ali
que te encontraram.
o lixo é a casa no campo
a casca da traça.
nasça mariposa e
busque sua luz.

um dia vão te reconhecer.
reconhecimento é a cola
de um relacionamento.
passe a cola em você.

e não se esqueça
da próxima vez
de mostrar suas etiquetas.

AQUI FORA

basta sair
de dentro de si.
agora podemos.

aqui fora é perfeito
do jeito que dá pra ser.
o único jeito é agora.

aqui fora eu tenho tempo.
um segundo
quase infinito.
isso me lembra amor.
você já se amou hoje?

o carcereiro da mente
nos alimenta com problemas.
nunca toquei num problema
que não fosse a pele
de outro alguém.
o carcereiro imaginário 
oferece apenas ilusões.
o petisco predileto
dos ansiosos.

no alvoroço mental
as nuvens cortam pulsações.
pior tempestade.

você quer fugir.
é preciso coragem.
é preciso compaixão.
uma pitada de leveza
e um pouco de sorte.
então basta sair.
não há muros na alma.
não há grades no agora.

o universo é nosso parque.

preencha-se de existência.

ALUNOS DA NOITE

a noite permite
o que é proibido de dia.
chega de proibir-me;
vestirei minha sombra.

a madrugada conduz a aula.
somos todos alunos.
nossas línguas nacionais
se comunicam ao toque
na rua Peixoto Gomide.

minha imperfeição veste preto
sangra vermelho
dança o rolê inteiro.
estou melhor que ontem
sedento por hoje.

faço um corre de Corotes
ervas finas
finos com erva.
onde já esteve a sobriedade
resta apenas barulho
um bagulho que sorri pro poste.

estudo meus desejos. 
escuto sem freios
canções noturnas
rabas de neón
e uma insanidade devassa
que leva a massa
de um lugar
a lugar algum.

encontre-me num banheiro sujo.
vamos aprender a amar
enquanto nos esperam na fila.

a alvorada ensina:
uma noite à mais
é tudo o que precisamos.

venha anoitecer comigo.

EXPONDO UMAS VERDADES

chega de segredos
(diz a cerveja).

hoje soltarei umas verdades.

basta mais uns tragos
e um tanto de coragem
e um pouco de burrice.

é irreal o que sinto
porque só é real
se descobrirem.
tampo feridas internas
com nicotina.

alguém poderia usar 
os ouvidos comigo
pra variar.
lábios não escutam bem
e o seus 
gostam de interromper.
da próxima vez vou mordê-los.

tô expondo umas verdades
no meio da rua
fugindo do rapa
e da falsidade.
meus pesares são originais.
tem até etiqueta.
compre um pra dar de presente
à sua fé.
só não venha tirar a minha
porque antes de olhar pra cima
eu tenho que olhar pra dentro.
coisa que pouco "santo" faz.
se fez eu não vi
sou novo demais.

agora chega de verdades.
quero uma porção de amigos
e uma garrafa gelada.