quinta-feira, 29 de julho de 2021

É TUDO RELATIVO

Meio que já me perdi
em algum minuto desse relógio.
Talvez num segundo
tudo mude.
Vamos esperar.
Vamos esperar.
Vamos esperar.
Vamos esperar.
Ah, espere você,
vou me encontrar
relativamente
noutro tempo.
Seu relógio não tá
sincronizado
com o meu.
Um de nós
foi rápido demais.
E a referência
pediu espaço.

SABOR D'ÁGUA

Um álbum novo pra se escutar
da sua banda favorita.
O som tá no último volume.
Tá sol lá fora,
o dia quase que te implora
para que você
faça parte dele.
Hoje não.
Hoje só há o álbum novo,
e o corpo dançando
músicas que não conhece.
Pois as canções lá fora
já foram decoradas.
Muita deprê.
Baixo-astral.
É tão lindo aqui.
Pena que o desejo de compartilhar
supera o de apreciar.
Apreciar isolado
tem sabor d'água.

DEPOIS DA QUEDA

Depois da queda,
a gente tem uma escolha de
levantar ou ficar
lá no chão.
Eu amo o chão.
O chão é menosprezado.
Creio que precisávamos passar
mais tempo no chão e
entender que 
saímos dele e que
um dia seremos ele.

E um dia nem mais chão terá.
Restos de estrelas
na correnteza do espaço.
Eu ainda não sei nadar.

Você sabe?

ÓRGÃO

Escutei meu órgão cantar
BRUUUUU

Não estávamos na capela,
mas creio que Deus
escutou meu peido.

Talvez fosse uma oração
bem profunda
pedindo a paz
para toda essa gente
que se odeia.

Ou talvez apenas uma nota,
uma nota destoante,
do meu órgão.
Um milagre divino.

Já bebi muito mais que isso,
mas mesmo assim
passo mal com menos.
São marcas do tempo.
Acorrentados à algo
que nem concordamos.
A vida é abusiva e
nem pede licença.
Já nascemos chorando;
preparo pra vida adulta.
Mas que adulto
te abraça
quando você chora?

Já bebi muito mais que isso,
e hoje eu vou ficar
só na cerveja.
Só na terceira lata.
Amanhã tenho o caralho todo
para resolver.
Você tem uma boceta toda.
Desculpa a língua.

Já bebi demais.
Chama a porra
do Uber.

PAUSA PRO CIGARRO

Sim, é literalmente
uma pausa pro cigarro.
Você queria um poema?

A BUSCA INCESSANTE

Sempre me incomodei
com areia nos pés.
Até que essa foi
minha única opção
pra chegar ao mar.
E então me incomodei
com o mar.

INVISÍVEIS TAMBÉM SENTEM FRIO

Algum dia existi.
Não hoje.
Talvez nem amanhã.
Mas um dia existi.
E um dia alguém me viu.
Algum dia fiquei bem.
E num dia sorri.
Sim, me lembro bem,
eles sorriram também.
Estavam bem em seus papéis.
Fiquei no improviso.
Cenário.
Um dia eu existi e
quero existir 
semana que vem também.
Mas aí são eles que decidem.
Eu só cumpro meu papel.
Pena que papel não esquenta.

UMA PUTA DE UMA DESPEDIDA

Você sussurrou
alguma coisa impossível,
e aí viemos pra cá.
Não há lugar algum,
nem nada para mais tarde.
Sua voz fica cada vez
mais distante.
Será que alguma vez
já estivemos próximos?
Por que não nos abraçamos
por mais tempo?
É tão tarde,
tão tarde e
estão todos dormindo.
Vamos falar mais baixo.
Ouvir um ao outro;
é tudo do que precisamos.
Mesmo que seja bobagem,
o que não foi até então?
Apertamos as mãos.
Já falei tanto que,
agora,
não consigo dizer mais nada.
E você não respondeu.

PORTUGUÊS / RUSSO

É a serenata da cidade.
Quero ficar louco até enxergar 
português em russo.
Viver segundos concretos.
Vazando de um dia ao outro,
apertando cinzas
como se ficassem sólidas
nos meus dedos.
Tiro!
Pra ficar ligado.
Tiro!
Pra me importar.
Assistindo a vida
num filtro tosco de
tela azul.
Nem imagino pra onde foram 
os sonhos de verão.
Nem sei se 
devo me preocupar.
Não é hora pra isso.
É hora de lembrar quem sou, 
ou aceitar o próximo trago.
Não há meio-termo nessa brisa.

terça-feira, 27 de julho de 2021

O ÚLTIMO CIGARRO(?)

Tô ansioso, fumo.
Tô tranquilo, fumo.
Tô sempre alguma coisa.
Eu nunca tô nada.

Penso, fumo.
Como, fumo.
Bebo, fumo.
Tô sempre fazendo algo.
Eu nunca tô fazendo nada.

O coração fica batendo e
a boca fica te desejando
e quando tô do seu lado, fumo.
Quando tô longe, fumo.
Tô quase sempre orbitando.
Eu quase nunca tô no nada.
No quase que sobra eu fumo.
De resto fica só fumaça.

É por isso que sempre volto.
Há desculpas e nenhuma solução.

Fumo perguntando.
Fumo respondendo.
E entre um silêncio e outro,
preciso ir até a padaria
comprar mais um maço.
Até lá, fumo
o último cigarro.

VACINADO

Tentei acender o cigarro,
perdi o isqueiro.
Ainda não há vacina para isso.
Vivo remediando o passado,
o presente anestesiado
para as dores futuras.

Recomendaram exercícios e frieza.
Corações em quarentena.
Falaram pra cuidar de mim primeiro.

Achei o isqueiro,
acendi o cigarro do avesso.
Ainda não há vacina para isso.
Um acidente isolado.
Bem, tá tudo isolado mesmo.
Nisso já sou vacinado.

Recomendaram "Memento Mori".
Eu prefiro "Carpe Diem",
mas só lembro de madrugada.

O isqueiro e o cigarro acabaram.
Meu cérebro de lagarto tem sede
de vida.
Ainda não há vacina para isso.

terça-feira, 20 de julho de 2021

POTENCIAL SOLAR

O sol na cara e o cachorro latindo
e todos os problemas do mundo
num pensamento a cada segundo.
Esconderam meu potencial
na gaveta da insegurança.
É fácil esquecer-se neste mundo barulhento.
Em tantas vozes egoístas.
O difícil é escutar o que vem de dentro e entender
o que é verdade e
o que é besteira.

O sol na cara, no corpo e na alma.
O cachorro continua latindo e
parte minha quer brincar com ele e
outra parte quer explodir a praça toda.
Roubaram os meus sonhos e
gastaram nos sonhos deles.
Tudo bem; de onde eles vieram
há muito mais.
Meus sonhos são infinitos e
é por isso que ainda não realizei
nenhum.
Ou talvez seja por causa
do pôr-do-sol.
Só saberemos no final da noite.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

DEAD URUBU

Tive que arder meus olhos pro céu.
Penas pretas caindo das nuvens.
Como os urubus não esbarram
uns nos outros?

Ah, meu coração sangra
em arame farpado enferrujado.
É isto.
Estão me rodeando,
prontos para devorarem
o que restou das minhas ilusões.

Ração para verme.
Eu tô dead, urubu.
Eu tô dead, urubu.

Tive que arder meus olhos
para mais uma semana
em que invejo o barro
que ainda não é Adão.
Como os urubus dividem
as carcaças?

Ah, meu sossego emputeceu-se
de tanto tédio.
É isto.
Serei bicado igual
um cavalo podre.

Ração para verme.
Eu tô dead, urubu.
Eu tô dead, urubu.

Venha me buscar antes
que eu passe da validade e
te dê dor de barriga.

Ração para verme.
Eu tô dead, urubu.
Eu tô dead, urubu.

terça-feira, 13 de julho de 2021

DISTANCIAMENTO EMOCIONAL

Sou mais bonito de perto,
então não fique longe de mim.
Combinamos alguma coisa.
Eu levo a chuva e depois
você conta quantas vezes
se molhou nela.
Porque veja só que tarde bela,
diferente de tudo o que
disseram que não era.
Pode colocar sua mão no fogo,
o corpo inteiro se quiser:
distanciamento emocional
corroendo meu coração
pessoalmente.
Você se merece tanto e
eu me mereço mais.

Combinamos alguma coisa.
Você compra as passagens,
a gente viaja só de ida
para algum lugar bacana.
Pego minhas coisas,
esqueço os problemas
na outra mala.
Você aproveita a chuva,
eu conto quantas vezes
fugi dela.
Porque veja só a aquarela
pintada de estrelas,
o que a gente era.

Sou mais bonito de perto.
Não fique tão longe assim.
É, me faça o favor;
não fique tão longe assim.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

FIOS DE COBRE

Tentei ganhar dinheiro com
fios de cobre e
ganhei dores nas costas.
Eu queria pagar essa rodada
para ver você sorrindo.
Mas levaram meu dinheiro
quando fui tomado pelos vícios.
A música tá no último volume
e treino mil maneiras de não pensar
tanto em você.

Fui vender os fios de cobre.
A conta estava zerada.
Será que sou suficiente
para te amar?
Falaram que é idiotice.
Compraram cervejas amargas demais e
o cobre não rendeu
tanto assim.

Vendi meus erros também,
cinco centavos o quilo,
minha maior fonte de renda.

terça-feira, 6 de julho de 2021

O CONTO

Pimentão. Foi a única coisa que passou pela minha cabeça, e eu ansiava uma ideia nova, algo substancial para escrever um conto que me tirasse da fossa. Aquela volta pelo quarteirão não estava funcionando, então decidi caminhar até a Praça Brasil e no meio do caminho rezei para achar uma carteira recheada no chão. Sem documentos. Se houvesse algum, ficaria com peso na consciência depois de gastar o dinheiro. Até negociei por uma nota de cinquenta, depois baixei para uma de vinte e no final procurava por moedas. Futuquei um papel azul e era só um folheto de lava-rápido. Dez conto a ducha. Joguei fora o papel numa lixeira.

Um carro da PM andou do meu lado e foi reduzindo a velocidade, e eu fiz uma lista mental de tudo o que carregava no bolso, se não havia esquecido uma ponta dentro de um maço ou algo do tipo. Há anos que não fumava um, mas a luz vermelha da sirene te faz pensar até no número do RG de trás pra frente. Talvez quisessem pedir uma informação, saber como chegar na Virgínia Ferni, ou se eu havia visto alguém suspeito. Era improvável. Que merda: eu só queria uma inspiração e seria enquadrado, humilhado à toa, já não bastasse eu ser escritor, pobre e sem ideias. O veículo me ultrapassou e desceu sentido à estação José Bonifácio.

Cheguei na Praça e sentei num banco de concreto, perto de uma delegacia, e comecei a matutar: um homem é preso porque rouba um pimentão num mercado. Mas então um caminhão carregado de cocaína foge em alta velocidade, se choca com a viatura e os dois policiais na frente e o caminhoneiro morrem. O prisioneiro escapa ileso, arrebenta a porta de trás, vai até o banco da frente, encontra a chave das algemas no patê de farda e foge. Ele volta ao mercado e tenta roubar outro pimentão. Fica com medo, deixa o legume com uma das caixas e pede desculpa. Essa era a ideia do conto. Fantástico. Agora só precisava de um bom começo, algo marcante.

“José olhou para os dois lados antes de colocar o pimentão no bolso da jaqueta jeans surrada...”

NADA SÓBRIO

Há trinta e poucos dias que não fumo, não bebo e não vivo. Os mesmos prédios de sempre poluem as vistas; são o estandarte do tédio. Apoio os braços preguiçosos na sacada e procuro algo no céu tom de sábado morto. Alguma resposta divina. Escuto os deuses rindo, fumando palheiros de ouro e bebendo vinho. A varanda assiste meu definhar ao desgastante girar dos ponteiros.

Meu primeiro gole foi quando meu pai e eu estávamos num bar aleatório. Contava uns oito anos de vida. Ele me ofereceu um pouco de conhaque. Tinha um sabor amargo, idêntico ao remédio para febre. Percebeu minha careta e esfregou meus cabelos. “É ruim, né filhão? Só não conta pra sua mãe. É nosso segredinho”. Depois que minha mãe nos abandonou, essa se tornou a única lembrança que tenho do meu pai demonstrando afeto.

Entro no meu quarto e afundo o rosto carcomido no travesseiro. O que resta do dia é respirar até meia-noite. Com sorte sentirei gratidão no banho ou quando estiver cagando, ou quando a água do café borbulhar. Por enquanto, é apenas um nada sóbrio. Vazio cercado de páginas em branco, histórias que nunca acontecem.

Na tarde seguinte, minha última amiga vem me visitar. Fuma um delicioso cigarro na minha frente. Seu rosto possui aquele desdém que só os gatos conseguem transmitir. “Parou com tudo mesmo?”, ela pergunta. Digo que estou tentando melhorar. “Só porque você parou de fumar e beber não significa que você é uma pessoa melhor. Ninguém é melhor do que ninguém”.  

Vai até a geladeira e guarda as latas de cerveja. Dou uma espiada nela. Apoia a bituca nos lábios vermelhos. Consigo ver sua saliva quente. Lambo meu beiço. Saudade daquilo. “E aí?”, ela pergunta. E aí o quê? “Os copos. Onde você guarda os copos?”. No armário de cima. Aí mesmo.

Ela puxa a mesa de centro e preenche o copo com cerveja. O colarinho espuma até o topo e quase transborda. Sabe, não gosto muito dessa tentação toda. “Se você não aguenta ver, é porque não tá pronto pra parar”. Minha última amiga é uma otária.

Meio bêbada, ela entra no elevador.  Da sacada, vejo suas mechas loiras seguindo pela avenida rumo à estação. Semana passada era ruiva. Amanhã seu cabelo estará azul, para combinar com os olhos. Ela vira o rosto e olha em minha direção. Acena. Desaparece ao dobrar a esquina.

O fim da tarde acompanha meu corpo inerte e destituído de sonhos, uma carcaça vazia, sem dopamina alguma. O sol desfalece aos poucos. Talvez eu já tenha morrido há tempos. Respiro fundo. Cheiro de incenso vindo dos maconheiros do apartamento ao lado. Milhares de cabeças rolando a vinte metros dos meus pés. Nenhuma delas tem uma resposta. O Conjunto Habitacional esquecido, tricotando famílias problemáticas. Pais que odeiam os filhos. Filhos que esquecem os pais. Um aparelho de som é trocado por uma pedra. O peso do mundo começa a lesionar minhas costas e a minha cabeça. Entro desnorteado, sigo até a cozinha e abro a geladeira; sobrou uma latinha.

 “Nunca serei uma pessoa melhor”, eu grito, levantando minha quarta dose de pinga com limão, “porque ninguém é melhor do que ninguém”. O senhor sujo do meu lado não entende nada. “Se ninguém é melhor do que ninguém, como posso ser melhor do que aquele que já fui?”, eu concluo a retórica. O velho discorda, apoia as duas mãos no balcão e começa a balbuciar sobre sua vida. A ex dele fugiu com um viciado em cocaína. Só entendo isso. Peço mais um litro de cerveja e um maço de filtro vermelho estoura peito. Se é para cair no abismo, que seja dando salto mortal.

Acendo o cigarro com um isqueiro emprestado e aprecio a fumaça tóxica corroendo meus pulmões. Dou um gole bem devagar na cerveja para hidratar a goela. A combinação perfeita. No boteco só há homens. Velhos e destruídos, dão passos sem rumo com as cordas vocais queimadas. No canto, uma televisão ignorada gastando energia à toa. O cheiro de desilusão sobe misturado à neblina dos cigarros tragados.  O senhor sujo termina sua história e brinda comigo.

Comecei a evitar meu pai, suas palavras de mármore, quando mudei pra cá e me estabilizei. Na época eu gostava apenas de vinho. O velho me ligava e eu retirava a bateria do meu telefone. Arranjou uma namorada dois anos mais nova do que eu. Um dia apareceram aqui na minha porta, como pesadelos persistentes que te perseguem durante a madrugada.

O álcool lambe meu rosto e o meu corpo inteiro, fazendo cócegas nas bochechas e no cérebro. Sinto vida na ressaca.  É mais natural trabalhar assim e responder e-mails, preencher planilhas, participar de reuniões. Tudo à distância. Tudo distante de mim. Os problemas se escondem depois que a rolha sai da garrafa. Gênio etílico. Até o clima fica mais agradável. Pede uma cerveja. Bebe-se para comemorar, para enlutar, para que algo aconteça. O fígado pinga em suor. A pele ganha um tom amarelado. A existência ganha todas as cores. Não importa qual dia seja; todo dia pode ser seu último.

Ligo o rádio e remexo minha bunda nua em cima do sofá. Compro uma planta. Ela morre em oito dias. Bebo uma garrafa de vodca e jogo o vaso pela sacada. Planta voadora. Escuto o vaso preto de plástico espalhar a terra e a planta na calçada. Que merda. Desço e recolho a sujeira. Algumas pessoas passam por ali. Olhares suspeitos. Apertam o passo quando não consigo ficar de pé. Ninguém é melhor do que ninguém. Os caras lá do boteco entendem isso.

O senhor sujo me arranja um cigarro solto. Ele nunca sai dali. Faz parte da mobília como a mesa de bilhar ou a máquina caça-níquel escondida no banheiro desativado. Está fedendo à graxa e fritura. Bebo mais um copo de cachaça para esquecer o cheiro. Criamos uma espécie de amizade que nasce na primeira dose e morre com o fechar das portas de aço.

Ele volta a falar sobre a ex-mulher, mas de algum modo a propaganda na TV está mais interessante. Comercial de cerveja. A alegria só é real quando bêbada. Interrompo o velho e digo: “Um brinde à nossa felicidade”. Ele fica imóvel por alguns segundos. Levanta o copo e conclui: “você é um cara digno”. Reparo que seus olhos se enchem d’água. O que é isso? Já está ficando emotivo? Ele esfrega o rosto com a manga da jaqueta jeans surrada e começa a dizer alguma coisa sobre a filha falecida. Minha bexiga grita e corro pro banheiro. Volto e mudo de assunto.

Caminhamos entorpecidos por noites ingratas. Cães abandonados rasgando sacos de lixo, iluminados pelas lâmpadas laranjas dos postes que presenciam tudo. Os pixos nas portas dos comércios fechados são ignorados pelas crianças com vodca e energético nas mãos. O que mais podemos fazer num lugar assim? O velho começa a cantar Tim Maia. Diz que a ex dele amava Tim Maia. Para de cantar abruptamente. Se despede e aponta para a esquina. “Moro ali perto”. Provavelmente em alguma calçada maltratada. Irei chamá-lo qualquer dia para almoçar em casa e ver se a gente se dá bem sem beber. Os nossos corpos balançam, lutando contra a gravidade. Depois a gente se vê. Sempre há depois.

“Ele morreu”, o dono do boteco diz. “Se matou. Misturou uns remédios com cachaça”. Olho em volta; continuo vendo apenas homens tristes. Não quero ser mais um. Quero outra dose de conhaque. Acho que vou voltar para casa. Não estou me sentindo muito bem. Quando fecho a porta da sala, uma lágrima escapa do meu olho direito. Só uma lágrima.

Ofereci um pouco de vinho para meu pai e sua namorada. Eles se aconchegaram no sofá. Meu pai arreganhou as pernas; era como se fosse dono do prédio inteiro. “O bairro aqui é muito perigoso”, ele disse. Nunca tive problemas. “Tá trabalhando de que?”. Home Office para uma startup. “Sem estabilidade alguma. Devia trabalhar em banco ou prestar concurso público”. Talvez futuramente. “Não tá namorando ninguém?”. Estou focado na minha carreira. “Você precisa arranjar alguém. Você sempre foi solitário. Veja eu, por exemplo...”, sim, tudo bem. Entendi. Quem sabe agora você começa a agir feito homem e ela não te abandona que nem minha mãe?

Os dois foram embora. Acabei não comparecendo ao enterro do meu pai.

Chamo minha última amiga para beber umas cervejas. Ela vem. Cabelo verde e um engradado. Um maço novo de mentolado. A primeira lata a gente vira de uma vez. Furamos a parte de baixo, abrimos um pequeno buraco e então viramos o lacre. A cerveja sai num jato só. Arrotamos e acendemos um cigarro. Bebemos a segunda lata normalmente enquanto desabafo sobre o senhor sujo. Ela tenta me consolar: “nunca sabemos o que se passa pela cabeça das pessoas”. De certa forma, me sinto culpado. Não sei ao certo por quê. É como se eu pudesse ter evitado isso. “A culpa não é sua”, minha amiga responde. “Bebe que passa”.

Continuamos esvaziando as latas até estarmos totalmente chapados. Não consigo desgrudar meus olhos da boca dela. Parece estar mais rosada do que das outras vezes. O contorno dos lábios contrasta delicadamente com a pele branca do rosto. Chego mais perto. Ela percebe. “Você sabe o que penso disso”. Respondo que não me importo e que nunca sabemos o que se passa na cabeça das pessoas. Olha para minha boca semiaberta e ri. A gente se beija.

Na manhã seguinte ela levanta primeiro. Veste a calcinha e o sutiã. Está atrasada para algum compromisso. Durante o dia todo, evito ficar pensando nela. Não repetirei o mesmo erro da outra vez. Foco na ressaca. Tomo um chá de boldo que desce com gosto de segunda-feira. Dez minutos depois, mando uma mensagem para minha amiga. Vamos repetir a dose semana que vem? Ela diz “talvez”.

A semana passa. Deixo tudo preparado. Compro um vinho que ela gosta. Depilo meu corpo inteiro e bebo uma lata para relaxar. Dez horas da noite e nada. Abro mais duas latas. Onze horas e nada. Já estou na sexta lata. Meia-noite ela envia uma desculpa. Diz que saiu com uma garota. Mato a garrafa de vinho em poucos goles. Meus dedos bêbados respondem com todos os insultos possíveis. Não mereço ser tratado assim. Minha casa não é adega. “Eu pensei que você tinha melhorado. Mas me enganei. Não me procure mais”, ela manda. Eu digo que nunca melhorei porque ninguém é melhor do que ninguém, mas ela é pior do que todo mundo. Depois disso nunca mais houve uma resposta.

Durante a noite, sonho com o velho sujo. Estou no corpo dele, fumando um charuto no balcão do boteco. Na banqueta do meu lado, um menino balança as pernas. Veste meias brancas, um shorts azul e uma camiseta listrada. É muito parecido comigo quando eu era criança. O menino me pede guaraná. Pego meu copo de conhaque e dou para ele. Esfrego seus cabelos. “Você está melhor?”, ele pergunta. Digo que não. “Eu gostava mais da gente antes, sabia?”. Sim, eu sei. Desculpa. O menino então implora: “por favor, não me deixa morrer”.

Acordo em prantos.