sexta-feira, 23 de outubro de 2020

SORTE À PROVA

Numa terça, cara de chuva, fui pra Av. Paulista. Minha cidade é linda, mas é feita de açúcar. Eu tinha umas coisas para resolver lá, mas minha cabeça é uma gaveta de meias desorganizada. Não havia dormido bem na noite anterior. Só de imaginar o trem e o meu corpo na cidade depois de todo este tempo, meu peito começava a estralar e minhas mãos viravam dois blocos de gelo. Tentei meditar, tomar chá, socar o travesseiro, me masturbar. E o ruído branco continuava na minha mente. Já estava na hora. Botei minha sorte à prova. 

Fui até a Alameda Santos e fiz o que eu tinha para fazer. Estava cedo ainda. Com um pouco mais de tranquilidade, resolvi dar uma olhada na Rua Augusta. Comércios novos, moradores de rua velhos. O ar ainda era o mesmo, o contraste era preto e branco. 

Havia uns trocados à mais no meu bolso. Decidi contrastar minha garganta seca com uma cerveja gelada. O líquido espumou na minha língua, desceu efervescente, refrescando meu esôfago. Em um gole, meia lata. O céu escurecia e algumas gotas apressadas já caiam na calçada.

Fui embora até a estação. Álcool em gel a cada 5 minutos. Na Luz, um amontoado de gente na plataforma. O trem lotado de potenciais portadores de Covid. Eu precisava ir embora naquele instante, ou eu teria de enfrentar o horário de pico. Entrei, me enfiei no meio daquelas pessoas. Meia hora depois e o trem não havia se mexido.

Falha técnica. Descarga elétrica. Chuva. Açúcar.

Minha única opção era pegar o metrô até Itaquera e de lá pegar um ônibus. Olhei meus bolsos: R$4,20. Faltavam 20 centavos para completar a passagem. Sai do trem e olhei minha carteira. Havia dois poemas dentro dela. Botei minha sorte à prova mais uma vez. O primeiro casal que vi, sentados no chão, de risos e coxinhas. Uma moça e um rapaz. Teria de ser aqueles dois.

- Olá! Eu tô dando poemas para as pessoas com quem eu vou com a cara - eu disse.

Entreguei o poema, eles leram. Estavam quase me agradecendo. Eu interrompi:

- Vocês têm 20 centavos?

O rapaz deixou um riso escapar. Houve alguns segundos de silêncio constrangedor. A moça me encarou e perguntou:

- Só 20 centavos?
- Sim, só 20 centavos. O trem tá parado e eu preciso chegar na José Bonifácio. To querendo completar a grana pra pegar um ônibus em Itaquera. 

A moça então me deu uma moeda de 50. Caminhei cheio de sorrisos, na direção oposta da multidão. Era como descobrir o segredo da vida, a resposta divina. Achei a falha no sistema. Dali em diante, era tudo uma questão de paciência e resistência física.

Quando cheguei em casa, tomei um banho, coloquei o volume no último e fiquei esticado no sofá, com o corpo todo moído, em estado meditativo.

Sério, não havia mais nada na minha cabeça.