segunda-feira, 27 de abril de 2020

PÁGINA COLORIDA

Tentei escrever em cores.
Todas vazaram aos cantos.
Não há cores
num poeta cinza.
Tive de degustar
quarenta milhões
de baldes de tinta
e mesmo assim
não consegui
representar o dia.
Agora há rabiscos
no meu passado.
A mistura de
todas as cores é
apenas um
marrom merda.
E marrom nem existe.
É só um laranja escuro.
Então vi as manchas
da tarde no papel.
Era melhor esquecer
por algumas horas e
comprar três pães e
um litro de leite.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

QUARENTENOU

Certo dia abri os olhos
e não pude sair de casa
porque não havia nada
além do Sol lá fora.
Acordei preso
comigo.
Preso em querer
ser outra coisa.
Jaulas camufladas,
asas em filetes.
Antes da pandemia
eu podia escolher
entre fugir da vida
acompanhado ou
fugir da vida
sozinho.
Agora há apenas
liberdade de escolha
entre venenos.
Escolhi guardar
tudo o que sou
na geladeira,
junto ao feijão.
Amanhã serei livre
como um vírus.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

ACORDAR CAFÉ BANHO

Ela estava sentada no sofá e
a sala era papéis, contas, fotos.
Tudo espalhado
no chão, colo e teto.
Era o fim dos entulhos.
Apocalipse do lixo.
Mesmo assim,
sempre acordo de mau humor.
As palavras não saem.
Simplesmente ficam sentadas
entre o estômago e o esôfago.
Algumas escapam em formato peido.
Ela começou a falar.
Mostrou os desenhos que fiz
quando tinha 4 anos.
Fotografias de infâncias esquecidas.
Esperava uma reação;
eu só esquentei o café e
comi bolacha de maizena.
Poderia ter mudado o mundo,
destruído a humanidade,
ter dado um "bom dia".
Só fiquei com a boca cheia.
Tava cedo demais pra existir.
Ela sabia disso mas
uma criatura tão
magnífica
tem pressa de dizer e viver.
Isso pois tenho sorte.
Nunca correspondo.
Olhei pra fora e percebi que
era mais um dia sem eu
ser melhor.
E ela continuava me amando.

UMA INSÔNIA EM DRUMMOND

Penso, penso
em horas de sono.
Todo homem dorme,
calando olhos,
treino de morte.
Vejo problema no
tom da voz,
no que disseram,
no que dirão.
Foi mais uma hora.
Então outras.
Perdeu-se a primeira,
perde-se todas.
Agora há manhã em minha janela.
E nenhum sonho no corpo.
Só imaginação e
cultivo de catástrofes.
Chuva de abstrato.
Dormirei ao bom-dia, provável.
Acordarei às treze, para café e
outra chance nesse mundo.