sexta-feira, 7 de junho de 2019

CONSELHO PARA MIM (OUTRA PERSPECTIVA)

Disseram:
"Pare com essa mania de
não se aceitar.
Sua vida tem que ser interessante
ao invés de ser perfeita.
Vidas perfeitas são um chute no cu."
Eu ainda não sei o que sou,
e quero nunca descobrir,
porque descobrir é a melhor parte.
"Seu DNA já é querido pelo universo.
Um em cada 7,6 bilhões.
As chances estão a seu favor
Aproveite."
E agora eu vejo no vício
de cada olho que vomita
opinião que, na moral,
fodam-se as opiniões.
Fodam-se os conceitos.
Fodam-se os padrões.
Essa é minha perspectiva.
Vou espalhar loucura
num mundo insano.
Cada hormónio espatifado
nos postes, atropelados
por carros sádicos.
"Vamos namorar a cidade e
foder gostoso.
A festa já vai começar."

REQUIÉM PARA NÓS

Linhas ruins, linhas grossas
contornando seus traços.
São tão indelicadas
quanto as palavras que
eu te disse da última vez.
Tento lembrar do formato
das suas orelhas.
Passei boa parte do tempo
na sua boca, e agora
não consigo reproduzir
os outros detalhes.
Seus braços balançavam
suavemente enquanto
escutávamos Lana
depois de fumar um
na varanda.
Agora só minha memória
pode te visitar.
Toda briga é inútil;
deixo minha culpa descer
ralo abaixo.
Há outras pessoas pra desenhar
na era mais vulgar de todas.
Deixemos que os padres
rezem por nós dois.
Uma aventura nova me aguarda
nessa boca que me mancha
com batom preto.

O RITUAL

Espelhos gostam de
me botar pra baixo.
É por isso que faço
a dança do cachorro atropelado
e mostro meu dedo do meio
pra este idiota do outro lado
do espelho.
Eu o amo, entretanto, então
lhe compro o melhor maço
de três conto no boteco
da esquina.
Sexta-feira, Junho.
Na mesma rua, o mesmo
mercado e a mesma latinha,
só pra começar.
Logo alguém aparece.
Alguém sempre aparece.
Esse alguém vai dividir
um corote ou um cantinho
comigo.
Não vou lembrar do que
conversamos no dia seguinte,
e direi coisas pra este alguém
das quais já disse ontem.
Logo a rua lota;
tem que ficar bem cheia
pra me preencher.
No aconchego das noites fúteis,
passo despercebido como
a pena velha de um pombo.
Vale alguma coisa,
vale mais do que qualquer coisa.

O QUE DIZER NUMA ENTREVISTA DE EMPREGO

"Qual o seu maior defeito?"
Estar aqui por pura
necessidade.
 "O que você faz?"
Fodo meu corpo com toxinas
pra sair da minha cabeça.
Fodo com alguém por carência.
Fodo oportunidades porque
talvez eu não as mereça.
"Como era seu antigo emprego?"
Morrer durante oito horas,
comer durante uma.
"Como você se vê daqui 10 anos?"
Me vejo sentado num lindo divã,
com alguém do meu lado,
escutando tudo o que digo e
me receitando um antidepressivo.
"Quais suas ambições aqui dentro?"
Não perder a loucura.
Não deixar que me levem
pra ser soldado numa tropa
de manequins.
"Por que eu devo te contratar?"
Me empreste um isqueiro e
eu fumarei um cigarro
tão maravilhosamente
que será impossível me
dizer não.
"Ok, entraremos em contato"

UMA GAROA A MENOS

Não quero que você pense
muito nisso.
Mas cada garoa que te
irrita, que estraga seu rolê,
é uma garoa a menos
na sua vida.
Não sei se os mortos
reclamam da chuva.
Talvez eles até sintam
inveja de nossas
meias encharcadas
por causa daquela poça
escondida no buraco
do asfalto.
Eu amava reclamar de tudo.
Mas a morte foi comendo
as pessoas ao meu redor e
logo eu percebi que cada
pequena bosta que a
vida despeja em cima da
gente, dá pra reciclar
num poema.
Com essa onda sustentável,
acho que é o melhor a
se fazer.
Chega de desperdiçar garoas.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

ATÉ AS FLORES CONSEGUEM

Quando você bateu a porta
da sala, um quadro do
meu quarto acabou caindo.
Você saiu com tanta pressa
que esqueceu o seu anel de prata.
Eu continuei na cama, olhando
para o teto sem sentir
coisa alguma.
Nada.
Nenhuma vontade.
Só uma irritação na
garganta, um sabor de
ressaca mal-curada e
um looping na minha cabeça
dizendo que eu sou
a pior criatura na Terra.
Talvez eu não merecesse
mesmo este corpo seu,
maravilhoso, chocolate
meio-amargo.
Nem o tempo que você
perdeu tentando me excitar.
Foi mal; vou ficar devendo
estes minutos pra sempre.
Acendo um cigarro e a
fumaça diz que "é normal".
E uma abelha, em algum
lugar deste mundo, está
agora fertilizando uma flor.

PROMETO

É que quando você
tá gemendo baixinho no
meu ouvido,
e eu sinto a vida quente
sobre minha pele, e
o meu corpo enterrado
no seu, parece que
os problemas desaparecem.
Quando você diz que
vai sentar na minha cara
e rebolar na minha boca
até gozar,
todas as dívidas são pagas.
Todas as brigas, perdoadas.
O sol até dá uma curiada
por entre as nuvens da chuva.
Amo o seu cheiro, e
poderia te lamber até
o fim-do-mundo, beijar
cada canto dessa delícia
que você chama de corpo.
Poderia até mamar seus anseios,
penetrar na sua insegurança,
abraçar sua tristeza.
"Foder é divertido,
mas foda apenas com
meu corpo", você diz.
Ok, nada de promessas.
Prometo.

VIOLINO

Anda na chuva, e a capa
de seu violino molha.
Logo menos, as únicas
luzes serão as dos postes,
das vitrines e dos faróis.
Embaixo de um toldo,
as cordas começam
a chorar uma melodia,
a cidade escuta ao fundo,
as gotas caem em silêncio.
Algumas moedas caem
na capa molhada que jaz
aberta na calçada.
A mina tá de olhos
fechados.
Em outro canto, um
cara bate nos pratos e
o bumbo toca o peito
daqueles que estão no porão.
Numa esquina, outra garota
canta ópera. Um cara balança
um saco cheio de latas.
O metrô avisa a próxima
estação. Um grupo
brinda sua cerveja.
O violino é guardado com
carinho debaixo de
umas palavras, tão imortal
quanto um momento, e
agora os prédios apagam
suas luzes pra dar
uma chance ao sol.

ME DESMANCHE

Tire cada peça minha.
Jogue em qualquer lugar.
Quero sentir sua língua
dizendo "que gostoso",
bem devagarinho, entre
um lábio e outro enquanto
você toma fôlego.
Não precisa acender a luz
porque a janela me dá
permissão de ver seu
corpo com as minhas mãos,
sua silhueta em contraste
com a fria arquitetura
dos prédios ao fundo.
Nosso azul no arrepio
dos pelos do seu braço,
que leva sua mão
até minhas costas,
e suas unhas até minha pele.
A cama te abraça por trás,
eu sigo por cima, por enquanto.
Não consigo parar de te beijar.
Sua respiração encosta
suavemente sobre meu rosto,
e isso me deixa louco,
com vontade de dizer para
a noite que não tenha
pressa de acabar.
No fim, mais duas pessoas
num apartamento
infectado de
gente.