segunda-feira, 21 de junho de 2021

NÉLSON GONÇALVES

Então eu assisti este vídeo, o Jô
entrevistando-o lá em 90.

Assisti sua gagueira e o
"R" pronunciado daquela forma que
os radialistas dos anos 50 costumavam
pronunciar,

e a voz grave e o jeito
lento e boêmio de contar histórias.

Aquilo me lembrou meu avô.
Escutei claramente sua voz cantando 
"Naquela Mesa".
O cigarro de filtro branco 
no bolso da camisa,
a postura reta, 
a barriga redonda que herdei. 

Os cabelos lisos penteados para trás.
A piada sempre na ponta da língua...

Algumas lágrimas caem sozinhas
como se outro alguém
as chorasse.

Era o neto com saudade.
Com muita saudade de um grande homem.
Ele gostava de Nélson Gonçalves.

As pessoas morrem duas vezes.
A primeira é quando o corpo padece.
A segunda é quando te esquecem.
Meu avô só morreu uma vez.

Obrigado, Seu Ismael.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

O VEÍCULO

Estou com este hábito de caminhar por ruas que não conheço. Saio de casa, escolho uma direção e vou me enfiando por aí, descobrindo lojas, praças e cantinhos onde o sol parece mais gostoso. Tenho feito isso por desespero.

Nosso corpo quebra. Não sabemos quando, nem como. Mas uma hora as costas doem e o que se fazia antes numa brincadeira agora é impossível na necessidade. Tenho lamentado no banco do motorista por muito tempo. Fiz 29 anos rodados, ainda consigo subir ladeiras de primeira. Único dono. Mesmo assim, encosto a testa no volante e questiono a estrada. Por que nos botaram aqui, assim, desse jeito?

Tenho caminhado sem sentir que caminhei. Mesmo com os pés na rua, parece que ainda estou no meu quarto. E hoje uma moto quase me atropelou. Passou fininha do meu lado. Se eu tivesse virado o rosto, o motoqueiro teria acertado meu nariz com sua testa. Na hora meu coração disparou. Mas, ao invés de amaldiçoar a situação, sorri. Aquilo era real. Meu peito estourando, minhas pupilas dilatadas, a garganta seca; estava vivo, fora de casa, fora da minha cabeça por pelo menos alguns segundos. Todos os atos desesperados são tentativas de fuga da própria mente. Eu era o próprio Andy num Sonho de Liberdade.

Não importa o quão longe você vá; pra onde você for, lá você estará. Carregando a mesma bagagem, o peso nas costas. Não dá pra distanciar-se de si.

Também não importa o que você faz pra se distrair. Quando se é vazio, todos os consumos são desperdiçados no buraco. Pode beber e se entupir à vontade. Pode gastar dinheiro, transar, fumar, ler, assistir, cheirar... No final, é você consigo mesmo. A culpa não é do mundo.

De repente estou na minha cama novamente, pensando e pensando e pensando. A única prova de que caminhei são anotações que fiz no meu bloco de notas preto quando sentei numa pracinha. Isso e a minha lombar dolorida. Assisto o resto do dia morrer pela minha janela. Um lindo dia de poucas nuvens.

Desligo os faróis. Retiro a chave do contato. Inspiro profundamente. Expiro consciente uma última vez.

Amanhã será diferente.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

PAPINHO FURADO


Faltava uma certa revolta ali;
a vida os mastigava,

triturava suas almas e

ficavam com a mesma cara
de besta
falando sobre as mesmas
besteiras,

reclamando do fulano,
da sujeira na mesa,
culpando as estrelas.

SUPERESTIMADA

Aí um dia desisti de ser feliz.
Anos correndo atrás
da mesma coisa

sem que ela me desse valor.

A felicidade é superestimada;
já conheci muita gente bosta
que só sabia sorrir.

Felicidade não tem peso, massa, energia.
É pó de fada,
promessa.

Prefiro correr atrás de sonhos,
pessoas gostosas,
rolês secretos.
E que a felicidade venha me procurar
quando eu estiver ocupado
com todo o resto do mundo.

terça-feira, 15 de junho de 2021

PALAVRA CERTA

Com quantas palavras se faz uma emoção?

Montar uma que
te una à mim
da mesma forma

que eu tô em você.

Talvez não saiba,
é,
talvez você nem desconfie.
Mas já dei tanta brecha
que me sinto um buraco.

o orgulho continua o mesmo,
só pra tapar erro.

Com quantas emoções se diz
a palavra certa?
Tenho dito demais.

acho que vou escutar
a voz fria da rua
em mais uma noite
que você "nem".

O TROCO DA MEIA-VIDA


O corre é louco e
o pouco que ganho
ganho correndo muito.

e vejo tanto
com pouco
e pouco com tanto

que às vezes bate um desespero, uma raiva
que fica pra lá,
tenho que levantar,
ganhar o troco da meia-vida, meio morrendo
todo dia.

o corre é louco, tampouco
a caminhada

longa como estrada
de começo, meio, meio
(essa porra não tem fim?)
Nem sobra tempo prum sorrisinho. Nem
espaço fininho
no trem lotado.

corre, louco, desbotado
de qualquer cor.
Corre, louco, desgastado
como peça descartável.

quem sabe um dia
te dão uma chance?

BILHETE

Bilhete de amor,
com amor

lembrança de que
ainda amo

tanto quanto da primeira vez.

Te escreverei quantas vezes
o coração permitir.
Ele anda batendo
sempre na mesma tecla

Tu-dum, Vo-cê
Tu-dum, Vo-cê
Tu-dum, Vo-cê

Agora vem bater 
Em mim, pra mim, aqui
antes que eu bote fogo
neste monte de papel;

bilhetes de amor.

LAVANDERIA


Nunca meço o sabão e
a água

nunca meço os quilos

nem separo cores.
quantos processos 
são necessários
pra limpar a cabeça?

a roupa tá no caldo.
Seca no vento
da tarde.

Maquinário gira e gira
e o tanque dança
e o que passou, passou.

Nunca passo a roupa.
Vou amassado
de amasso em amasso
tentando me endireitar.

na lavanderia de vida
Pendure camisetas em cabides
bata três vezes pra não enrugar.

repita até o fim.
até o fim

GENTE LOUCA

Gosto de gente que não precisa
enlouquecer
pra ser louca.

Já vem escrita

na história da própria pele,
na testa
"sou bobo e procuro semelhantes".

Gente que te lambe
como cachorro adotado.

Já lambi muita gente de repente
e poucos gostaram.

Isqueiros da madrugada,
que querem só aumentar
seu fogo,
o calor interno das emoções,
o calor intenso,
que só filhos de sóis
possuem
sem precisar possuir
um ao outro,
tão livres quanto o tempo.

Me arranja alguém assim
que eu te pago uma rodada.

SÍNDROME DO PALQUINHO

Ninguém calava a boca e
aquilo já me irritava tanto que decidi
ir dar um mijão.
Talvez na privada
encontrasse alguém interessante.
Saí de casa pra isso.
Gastei litrões com gente
que não sabe se escutar.

Quando todos acham
que estão no palco,
ninguém é espetáculo.

Atrapalhando-me pelos
corredores apertados,
vi que já dava pra fugir

do que eu nem queria
desde o começo.

"Da próxima", pensei
"vou escutar meu tédio e
fazê-lo companhia".

TAMANHA ANDANÇA

Ando um pouco
andarilho.
Tenho andado perdido
achando que dá
pra se achar
no tempo de
um passo
ao outro.

Só tem o fútil,
o trouxa e o nada.

silêncio impreciso
que diz tudo
sem dizer o absoluto.
Vácuo dos deuses.

Olho pro chão em busca
de notas de alguns reais.
Fuço o maço escasso.
Pensam que sou nóia;
na minha nóia só cabe um.
O resto se fode pra lá.

Um carro me dá passagem.

Tropeço no rascunho da via.

Com tamanha andança,
sempre volto sem fôlego
pra lugar algum.

TE ENCONTREI NO ROLÊ


Caí dentro da supremacia 
do energético.

Fins para meios.

Entre alheios, foi seu corpo
que fodeu com o meu
coração.
Nem precisava desse
sorriso.

Caí dentro da delícia
de você
como acabam as noites
perdidas na quebrada.

Ainda sinto cheiro
de vodca cigarro sexo.
Vou pedir para que façam
um perfume com a mesma
fragrância.

Caí na armadilha da paixão
um jogo que só se ganha
quando não se joga.
Você foi jogar outra coisa
com outra pessoa.
E eu me joguei no fluxo,
bebi mais um pouco,
fiquei à toa.

AGRADEÇA

Azul de hoje

dança de nuvens
e a cabeça preocupada
lambida pelo vento

O dia é presente.
Não seja mal-educado;
agradeça.

Sobre cinza, dentro de lixo
entre concretos
o sonho sonha o sonhador.

Azul de hoje
logo será
aquele que já foi.
E aquilo que já foi será
a história inútil
escrita na terra
em que o cão
enterra a merda.

domingo, 13 de junho de 2021

MARCAS QUE VOCÊ DEIXOU

A gente começou em versos
e agora mal lemos
a prosa.
Uma chama tão forte
apaga devagarinho.

Parte minha
tatuou seu nome
com rosas.
A outra, que ficou,
arrancou a pele
com os espinhos.

A gente sabe:
este "Nós" dura pouco.
Desejei menos noites.
Mas o mundo continuou
rodando bobo
da mesma forma
de sempre.

UM DOMINGO PRA ESCREVER

Passei o domingo inteiro tentando escrever. 
Só lapidei palavras de barro. 
Nada que fizesse jus ao que sentia. 
Simplesmente não ia. 
Os dedos gastavam-se nas teclas. 
Mas na tela havia apenas espaço
e sujeira. 

Resolvi tomar um café e 
comer um pão de torresmo. 
Alimentar os gatos. 
Responder mensagens. 
Procurar o reino dos céus. 
Então voltei pro quarto, 
sentei na cadeira e 
quatro palavras surgiram: 

você
é
um
nada

Aí me aliviei. Era exatamente isso.
Suspirei e fui dormir.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

FOI SÓ UMA NOITE

Só algumas horas e uns minutos
quentes o suficiente
para valerem por dias.
Foi só uma noite.
Mas quantas noites são necessárias
pra sermos felizes?
Por quanto mais precisaremos
enfrentar os anseios
uns dos outros
e tentar amar
por cima e até junto
dos defeitos?
Me diz, por quantas vezes
teremos de repetir
a mesma ladainha?
Foi só uma noite,
algumas horas e
uns minutos.
O suficiente para viciar.
O suficiente para nós.
Agora procuraremos
um ao outro
de formas diferentes
nos demais.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

ANU BRANCO

Eu já tava todo troncho
quando vi o anu branco
pousando feito cavalo
numa árvore.
"Há! Até pássaro passa 
vergonha!".
Então virei e vomitei 
no meio-fio.