quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

FERRO-VELHO

Saí tão puto de casa que botei o maço no bolso e esqueci o isqueiro. O saldo da minha conta digital havia zerado da noite pro dia.

Não cumprimentei ninguém na rua. Apenas carreguei os dois sacos de latinhas até o ferro-velho próximo da minha casa. Um dos sacos escorregou da minha mão e caiu, espalhando um monte de latas amassadas pela calçada. Parei, recolhi uma por uma e segui em frente.

Na porta do ferro-velho, havia um cara com um monte de sacos em sua volta. Cada saco tinha um tipo de lixo diferente: papelão, ferro, alumínio. Suas mãos estavam imundas. A boca portava uns dois, três dentes. O corpo era esquelético. A pele era marcada com tatuagens apagadas e esverdeadas, com traços bruscos, sem acabamento algum. Perguntei se ele estava na fila.

"Não, pode passar na minha frente, tô separando aqui ainda", ele respondeu.

Outro homem vendia umas telas de ferro e pedaços de papelão lá dentro. Ele disse para a funcionária: "o almoço já tá garantido". Ela respondeu que o almoço tava garantido há tempos.

Eu apenas conseguia olhar pro chão e pensar no meu saldo zerado. Saquei um cigarro. O cara do lado de fora veio puxar assunto. Começou:

"Assim eu não dependo de ninguém. Não preciso fazer mal pra ninguém. Puxei 23 anos de cadeia porque matei dois estupradores. Agora eu vivo assim. Se um cabra demora 10 dias pra comprar um chinelo, eu demoro 40. Mas eu compro o chinelo. Isso que importa".

Procurei meu isqueiro nos bolsos. Nada. Ele percebeu. Pegou uma mochila toda esfarrapada.

"Esse bic é do São Paulo, mas eu sou Palmeirense. É que me deram ele".

"Você fuma? Quer um cigarro?", perguntei.

"Não fumo não".

"Eu sou palmeirense, mas às vezes torço pro São Paulo também".

"Ah é? Então pode ficar com esse bic pra você. É seu!"

Eu não precisava. Ele insistiu e insistiu. Eu tinha um lá em casa e expliquei isto para ele, que sorriu e pegou o isqueiro de volta.

Chegou a minha vez de vender as latas. Perguntei se ele queria passar primeiro. Ele respondeu que não, estava sem pressa.

As latas somaram 18 reais. Cumprimentei o cara com um soquinho. Não perguntei seu nome, nem ele o meu. Quando cheguei em casa, meu saldo continuava zerado. Mas, de alguma forma, aquilo já não me aborrecia tanto.

Era uma pessoa diferente daquela que saiu de casa mais cedo.