quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

ESCARLATE

O que seria a noite
a não ser a silhueta
do mundo?

Vivendo o agora,
pétala por pétala,
me segurando em
sentimentos que
ficarão para trás
como o corrimão
de uma escada
em desalinho.

Nossas sombras
em ônix.
Nossas vidas
em escarlate.

Não irei tão gentilmente
no escuro dos
nossos erros.
Raiva em luz.

Você me encontrará
no castanho dos
desencontros.
Por cada pétala:
bem me quer,
mal me afaste.

Seremos um
com a noite,
fadados ao dia.

POR ORDEM DO CAOS

E a tarde se aproxima
com cigarro aceso e
becos secretos.
Com o sangue pulsando
em cada minuto
sobre postes blasés.

Escreveremos algo novo
sobre o que já
conhecemos.

Se eu tivesse que contar
a verdade sobre o sol
e a lua, eu teria de
esconder alguns detalhes.

Teria de engolir promessas
marcadas em neon.
Vestir correntes
mais uma vez,
até que o ouro
se desfazesse
sobre seus olhos.

Este anoitecer é nosso
por ordem do caos.

VERMELHO VELUDO

O toque em folhas
delicadas como outono
e ásperas como
os espinhos de
uma rosa.

Amo o constraste
do veludo vermelho
sobre o escuro da noite.
A gente anda por aí
e caímos e tropeçamos
nas horas não marcadas.

Meia-noite,
meio perdido
encontrando-se
no abraço silencioso.
Sozinho nas demais noites.
Talvez não nesta.

O toque em folhas
de veludo vermelhas
confirmam nossos desejos.
Que bom que
desejamos a mesma coisa.

FERRO-VELHO

Saí tão puto de casa que botei o maço no bolso e esqueci o isqueiro. O saldo da minha conta digital havia zerado da noite pro dia.

Não cumprimentei ninguém na rua. Apenas carreguei os dois sacos de latinhas até o ferro-velho próximo da minha casa. Um dos sacos escorregou da minha mão e caiu, espalhando um monte de latas amassadas pela calçada. Parei, recolhi uma por uma e segui em frente.

Na porta do ferro-velho, havia um cara com um monte de sacos em sua volta. Cada saco tinha um tipo de lixo diferente: papelão, ferro, alumínio. Suas mãos estavam imundas. A boca portava uns dois, três dentes. O corpo era esquelético. A pele era marcada com tatuagens apagadas e esverdeadas, com traços bruscos, sem acabamento algum. Perguntei se ele estava na fila.

"Não, pode passar na minha frente, tô separando aqui ainda", ele respondeu.

Outro homem vendia umas telas de ferro e pedaços de papelão lá dentro. Ele disse para a funcionária: "o almoço já tá garantido". Ela respondeu que o almoço tava garantido há tempos.

Eu apenas conseguia olhar pro chão e pensar no meu saldo zerado. Saquei um cigarro. O cara do lado de fora veio puxar assunto. Começou:

"Assim eu não dependo de ninguém. Não preciso fazer mal pra ninguém. Puxei 23 anos de cadeia porque matei dois estupradores. Agora eu vivo assim. Se um cabra demora 10 dias pra comprar um chinelo, eu demoro 40. Mas eu compro o chinelo. Isso que importa".

Procurei meu isqueiro nos bolsos. Nada. Ele percebeu. Pegou uma mochila toda esfarrapada.

"Esse bic é do São Paulo, mas eu sou Palmeirense. É que me deram ele".

"Você fuma? Quer um cigarro?", perguntei.

"Não fumo não".

"Eu sou palmeirense, mas às vezes torço pro São Paulo também".

"Ah é? Então pode ficar com esse bic pra você. É seu!"

Eu não precisava. Ele insistiu e insistiu. Eu tinha um lá em casa e expliquei isto para ele, que sorriu e pegou o isqueiro de volta.

Chegou a minha vez de vender as latas. Perguntei se ele queria passar primeiro. Ele respondeu que não, estava sem pressa.

As latas somaram 18 reais. Cumprimentei o cara com um soquinho. Não perguntei seu nome, nem ele o meu. Quando cheguei em casa, meu saldo continuava zerado. Mas, de alguma forma, aquilo já não me aborrecia tanto.

Era uma pessoa diferente daquela que saiu de casa mais cedo.

sábado, 9 de janeiro de 2021

COLARINHO SUJO

Minhas camisas sociais ficaram muito tempo guardadas, empoeirando e mofando e amarelando. Quando cansei de entregar currículos de joelhos, de vender meu tempo pra quem não tem tempo pra mim, eu consegui um trampo.

Faço trabalho de colarinho sujo.

Minha pele é meu uniforme.
Banheiros públicos
são meus escritórios.
Botecos são
salas de reunião.
Cachaça, cigarro e
maconha são
as ações da minha empresa.
O ponto é batido
com isqueiro ou
copo.
Inspiração, criatividade e
liberdade são
os bens mais valiosos
da companhia.

Todas as vagas já
foram preenchidas.
Sinto muito.
Chupe meus lábios e
então entraremos
em contato
caso um cargo
fique disponível.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

NÃO LEMBRE DAS COISAS BOAS

Não lembre das coisas boas antes da pandemia. Lembre do que era ruim.

Antes era uma merda ir pro trabalho. Agora você vai sufocado numa máscara, correndo risco de vida. Bem, todo mundo morre um dia, não é mesmo?

Lembre dos rolês desmarcados. Agora pense no que você faria pra juntar duas pessoas queridas no mesmo lugar.

Antes era uma merda sair de casa. Agora é uma merda sair de casa.

Não lembre das coisas boas. Lembre de tudo que era ruim e que agora você daria sua alma ao diabo pra ter de volta.

Aproveite a perda.

Deixe marcar no sangue.

E o mais importante: não se esqueça disto quando tudo passar.