terça-feira, 24 de dezembro de 2019

BEBENDO UMA COM O PAPAI NOEL

Numa laje aqui da quebrada, abro a terceira lata. Noel está na quinta.
- Sabe - digo a ele, - eu gosto do Natal. Não da ideia em si, mas do jeito que as pessoas ficam nessa época do ano.
- Tudo falso - Noel responde.
- É, mas funciona. Muita gente faz coisa boa pros outros. Esse "espírito natalino" salva muitas vidas. É uma pena que só acontece uma vez por ano.
- Vocês humanos tem uma capacidade limitada para bondade.
Encosto na muretinha onde Noel olha para o infinito da Cohab.
- Ou é que nem mijo - ele continua. - Vocês enchem o caneco de maldade o ano inteiro e aí dão aquela mijada boa no Natal.
- E onde que isso é bom?
- Não é que seja bom; é só o contrário do mal.
- Então a gente não mija, a gente vomita...
Papai Noel me dá um tapa na cabeça. Cuspo a cerveja que eu estava prestes a engolir.
- Caralho, moleque maldito! - ele esbraveja - Você tem a chance de tomar um goró com a porra do Papai Noel e fica aí cheio das filosofias, me contrariando e enchendo o saco!
- Foi Deus quem me deu o dom de pensar. Reclama com ele!
- No niver dele? Tá doidão? Quer que eu perca meu emprego?
- Você é CLT ou PJ?
 O rosto dele fica vermelho igual a sua regata. Seus olhos azuis-padrão-europeu perfuram os meus cor de pomba rola.
- PJ - ele resmunga, virando o resto da latinha e derramando um pouco na sua barba branca.
Pego mais duas latas dentro da caixa de isopor (poliestireno, desculpa). O gelo quase que queima minhas mãos. Esfrego uma das latas na minha nuca. Que calor do inferno!
- Vamos virar essas daqui - Noel propõem. - Pega minha faca ali na mesa.
Entrego a faca para ele, que abre um pequeno quadrado na parte mais baixa da lateral da lata. Então ele faz a mesma coisa com a minha e diz para botar minha boca no orifício e abrir o lacre.
A pressão faz com que toda a cerveja saia de uma vez pela abertura da lateral, atingindo meu fígado diretamente. Na metade da lata, desisto e jogo tudo no chão. Papai Noel atira o container de alumínio vazio na minha quebrada.
- Eu ia te pedir um presente - digo meio que enrolando a língua, - mas agora eu esqueci o que eu queria!
- Você tá vivo, seu bosta. Esse é meu presente.
- Mas é ruim, eu não sei viver!
- Se eu te desse um Iphone você aprenderia a mexer nele ou jogaria fora?
- Bem, eu jog...
- É RETÓRICA, SEU IMBECIL! É CLARO QUE VOCÊ APRENDERIA!
- Ah...
- É a mesma coisa com a vida. Não vem reclamar que você não sabe mexer no presente que eu te dei. Aprende, ué! Se vira!
Olho para o horizonte e vejo todos os aplicativos que posso usar. Não entendo nem a metade das suas funções, dos "porquês", dos "comos". A programação da vida é um grande Iphone importado que você dá para o seu Zé da esquina, que tem 85 anos e ainda escuta música no seu radinho de pilha.
- Vou embora, dar aquela trepada com a Mamãe Noel. Vou enfiar minha rena vermelha no trenó molhado dela! Ho, ho, ho!
- Deus me livre de ver essa cena - respondo, observando que ele já está botando suas tralhas pra dentro do trenó. - Ei! Espera aí! Você não tá bêbado demais pra conduzir o trenó não?
- É a magia do Natal, garoto - ele diz, subindo no trenó remendado e chicoteando as renas desnutridas, - o paizinho aqui aguenta fazer tudo ao mesmo tempo!
Uma das renas caga no chão. O veículo decola. Uma pomba passa na frente dele e é decapitada na hora. Entre as penas negras da ave extinta, Papai Noel grita:
- FELIZ NATAL! HO, HO, HO!

sábado, 14 de dezembro de 2019

MEUS AMIGOS ME DEIXARAM

Deixei que fossem.
Questão nenhuma.
Onde estavam há espaço
para novos.
Mas me deixam os novos
também.
Agora posso comprar
Corote amarelo
(o azul faz verde das suas
merdas).
Tantos rostos e pernas
botando a rua abaixo,
botando eu pra baixo...
Ok; culpado.
Tudo não é suficiente
pra manter sorriso interno.
Logo a fronte cai junto
das lágrimas alcoólicas.
Meus amigos me deixaram.
Deixaram
marcas poemas traços.
Não sei o que fazer
com o que sobrou
do meu coração.
Questão? Algumas.
Talvez muitas.
Talvez todas.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

TEMPO RUIM

Só tá chovendo no meu quarteirão.
Pelo vão entre o sonho e a realidade.
E pelo tom do céu, tá chovendo no amanhã também.
Minha camiseta favorita estava
com cheiro de suor
e isso me obrigou
a lavar as roupas que acumulavam no cesto.
O sol tava lá,
todo besta sendo estrela,
enquanto eu botava sabão demais na água.
Estendi a roupa e,
algumas horas depois,
começou a chuva.
Só tá chovendo no meu quarteirão.
O resto da cidade no brilho negro
do asfalto quente.
A esperança e a ingenuidade
engolidas pela boca-de-lobo sedenta.
Minha camiseta favorita está encharcada e
eu perdi a vontade de
fazer algo a respeito.
Só quero deixar
a chuva passar
enquanto tento
não levar tudo tão a sério.