sexta-feira, 30 de abril de 2021

O TRABALHO

John acordou meio-dia novamente. Abriu a janela do quarto. Tudo cinza. 

"O mundo continua uma bosta". 

Foi mijar. Depois cozinha. Café com leite e pão francês com margarina sabor manteiga. 

"Eu devia começar a comer manteiga de verdade". 

Olhou a pilha de louça acumulada de um dia pro outro. Aquilo era uma metáfora para seu estado mental. Os malditos estavam vencendo a guerra: ter uma vida comum era melhor do que aquilo que John escolhera. Pelo menos era o que parecia. Se tivesse continuado com sua primeira namorada, se não tivesse largado a faculdade e o emprego no centro da cidade, talvez aquela louça não estaria ali. Ou pelo menos ELE não estaria ali. 

"Vou lavar logo essa porra".

Depois de três copos limpos, sentiu três quilos de merda batendo na porta de seu ânus. Correu para o quarto. Não cagava sem ler algo.

"Dessa vez vou de Bukowski".

Aquele cara sabia o que era ser um perdedor como John. Na realidade, ele era o melhor de todos. Exercia miséria com maestria. John escolheu perder, mas ainda não se via um bom perdedor. Todas aquelas fotos no Instagram de gente se amando. Os casais e seus amores tão eternos quanto bitucas no cinzeiro. As vitórias e conquistas nos trampos odiados de segunda-feira... John achava que era uma falta de empatia fodida fingir estar bem nas redes sociais. Por que diabos ninguém nunca falava sua língua? Por que ninguém dizia a verdade? Estava na hora de alguém mandar um "foda-se" à superestimada felicidade. E esse era o trabalho do John: dar voz à quem estava mal, normalizar a tristeza inerente de ser humano. Na realidade, quase ninguém estava bem. Só eram bons mentirosos. 

"Preciso arranjar uma namorada. Preciso foder. Preciso dar um jeito na minha vida. Eu era bem melhor antes. Tinha uma fogueira, uma energia dentro de mim que tornava tudo excitante. Agora não há nada. Nem uma faísca. Tô seguro dentro de casa, sendo comido pelo tempo. Mal consigo dar um oi pra alguém. Me sinto um lixo, uma bosta bem pior do que este tolete que acabei de cagar. Mas não adianta ficar tentando me aprimorar sem antes aceitar o que sinto. Além disso, chega de pensar demais; tenho um trabalho a fazer".

Fechou o livro, limpou a bunda e apertou a descarga. Terminou de lavar a louça. Todo dia John tinha que lavar sua louça. E quase sempre lavava. Hoje ele lavou com um pouco mais de entusiasmo. Ligou o computador e as palavras fluíram. Copo nem meio cheio, nem meio vazio; bebeu direto da garrafa.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

O MELHOR DIA DA MINHA VIDA

Todas as contas estavam pagas.
Seu corpo tava
peladinho
e quente 
e cheiroso;
cara amassada.

Sem doenças.
Dia de sol.
Outono.

Peidei e te prendi
nos lençóis.
O café já pronto.
Escrevi um poema
enquanto fumava um cigarro
que não inflamava
minha garganta.

Aí eu acordei de verdade,
com a rinite atacada.

ANÚNCIO

Você poderá pular este poema
em cinco versos.

Mas, por favor,

poetas morrem

se não recebem 

atenção.

Pular poema ->

SOU GRUUUNGE (NÃO VISTO ROUPA USADA)

Veja minha calça rasgada e
meu tênis novo que
sujei e rasurei.
Olha essa banda
na minha camiseta
e minha 
vontade de morrer.
Chupa minha flor.
Sou grunge, porra.
Chupa essa breja.
Rock, yeah!
Não fumo Eight,
me dá dorzinha.
Nirvana e aquela outra
que o cara morreu.
Sou grunge, porra!
Foda-se a sociedade,
me segue de volta.

SOLUÇÕES MAL-RESOLVIDAS

Quando chove, a água escorre
pela parede e molha todos os
meus calçados.

Aí bolei um esquema 
e fumei.
Então tive uma ideia:
vou fazer miojo.

Os calçados continuam
mofando.

SACO, ROLHAS!

Peguei o vinho barato,
caro pro que tinha na conta.
Rolha, puta merda,
mundo cruel.
Furei e ela caiu
pra dentro do abismo líquido.

Era só o que faltava;
me fala que dá pra voltar
pro dia que eu era feliz
sem precisar ser feliz.

Bebi tudo,
comprei outro.
A rolha caiu de novo.

PICADA

Tô te encarando
mas a sua poeira 
caiu no meu olho.
Os dias incessantes
pararam no mesmo instante
e o que já fui
agora junta pó
numa estante.

Me pica, vai, pica eu.
Eu preciso disso
e você também.

Tenho
uma mente criativamente destrutiva,
aos rascunhos, sobrevivendo nas rasuras.
Busco nas alturas o que deixei
por baixo dos panos.
O plano é manter a cabeça
fora da própria mente.

Me pica, vai, só uma picadinha.
Senão eu morro
e você também.

Tô te encarando, teto,
mesma madeira de sempre.