sexta-feira, 30 de outubro de 2020

INCENSO

Imagino nosso agora
queimando lentamente
como incenso de
baunilha.

Imagino que não há nada
acontecendo.
Entre planos e desejos,
ficamos próximos do desapego.

Uma chuva doce
cai por toda uma cidade.
Gotas lavando o desafeto,
ignorando o incerto,
brilhando no concreto.

Imagino que tá tudo bem.
Enquanto o incenso não acaba,
sonhamos como anjos.
Como o divino e o profano,
a verdade e o engano,
deuses e humanos.

E então um café bem forte
pra quebrar essa dualidade.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

SORTE À PROVA

Numa terça, cara de chuva, fui pra Av. Paulista. Minha cidade é linda, mas é feita de açúcar. Eu tinha umas coisas para resolver lá, mas minha cabeça é uma gaveta de meias desorganizada. Não havia dormido bem na noite anterior. Só de imaginar o trem e o meu corpo na cidade depois de todo este tempo, meu peito começava a estralar e minhas mãos viravam dois blocos de gelo. Tentei meditar, tomar chá, socar o travesseiro, me masturbar. E o ruído branco continuava na minha mente. Já estava na hora. Botei minha sorte à prova. 

Fui até a Alameda Santos e fiz o que eu tinha para fazer. Estava cedo ainda. Com um pouco mais de tranquilidade, resolvi dar uma olhada na Rua Augusta. Comércios novos, moradores de rua velhos. O ar ainda era o mesmo, o contraste era preto e branco. 

Havia uns trocados à mais no meu bolso. Decidi contrastar minha garganta seca com uma cerveja gelada. O líquido espumou na minha língua, desceu efervescente, refrescando meu esôfago. Em um gole, meia lata. O céu escurecia e algumas gotas apressadas já caiam na calçada.

Fui embora até a estação. Álcool em gel a cada 5 minutos. Na Luz, um amontoado de gente na plataforma. O trem lotado de potenciais portadores de Covid. Eu precisava ir embora naquele instante, ou eu teria de enfrentar o horário de pico. Entrei, me enfiei no meio daquelas pessoas. Meia hora depois e o trem não havia se mexido.

Falha técnica. Descarga elétrica. Chuva. Açúcar.

Minha única opção era pegar o metrô até Itaquera e de lá pegar um ônibus. Olhei meus bolsos: R$4,20. Faltavam 20 centavos para completar a passagem. Sai do trem e olhei minha carteira. Havia dois poemas dentro dela. Botei minha sorte à prova mais uma vez. O primeiro casal que vi, sentados no chão, de risos e coxinhas. Uma moça e um rapaz. Teria de ser aqueles dois.

- Olá! Eu tô dando poemas para as pessoas com quem eu vou com a cara - eu disse.

Entreguei o poema, eles leram. Estavam quase me agradecendo. Eu interrompi:

- Vocês têm 20 centavos?

O rapaz deixou um riso escapar. Houve alguns segundos de silêncio constrangedor. A moça me encarou e perguntou:

- Só 20 centavos?
- Sim, só 20 centavos. O trem tá parado e eu preciso chegar na José Bonifácio. To querendo completar a grana pra pegar um ônibus em Itaquera. 

A moça então me deu uma moeda de 50. Caminhei cheio de sorrisos, na direção oposta da multidão. Era como descobrir o segredo da vida, a resposta divina. Achei a falha no sistema. Dali em diante, era tudo uma questão de paciência e resistência física.

Quando cheguei em casa, tomei um banho, coloquei o volume no último e fiquei esticado no sofá, com o corpo todo moído, em estado meditativo.

Sério, não havia mais nada na minha cabeça.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

(O)CULTO

Há um culto, sim, um culto
dentro de mim.
Véus que respingam
água benta
nos meus demônios,
que querem ser anjos.
Enquanto os santos,
em orgia, 
gritam na revolta
por mais espaço
para pecados.

Há um culto
dentro de mim.
Deus está chapado.
Sempre esteve.
Demoramos pra perceber.
É firmeza, mas dá
umas brizadas aqui e
lá.

Há um culto 
dentro de mim.
Não sei se cantam hinos
ou se fazem
solos de guitarra.
Talvez os dois ao 
mesmo tempo.

É errado desrespeitar pai e mãe
quando eles destroem sua mente?
É errado roubar
de quem te roubou primeiro?
É errado matar 
antes de ser morto?

E há um culto dentro de mim
que reza à um deus impossível.
O deus do amor, do respeito,
do "você sabe o que é certo,
caralho, nenhum padre
ou poeta tem que te
dizer o que fazer".

terça-feira, 6 de outubro de 2020

OTÁRIO

Um vício em organizar
um pouco do que o
tempo me recompensa.
Repetindo as ações
como inseto em natureza.
Nasci pra ser otário.
Vem a pergunta:
"Pra que isso,
se queimar tudo
é mais fácil?".
Agora eu morro,
no meio eu morro,
no fim eu morro
junto de meu encosto,
o troco fosco
à mim posto
por ser tosco.
Organizei minhas roupas
em ordem de cores.
Dias cinzas e
brisas infindas
serenando em cada
passo, cada lapso de
carência.
Eu tô carente pra porra.
Ninguém deve saber disso.
Os carentes são
devorados primeiro.
Ou esquecidos, ignorados.
Não nasci pra ser ignorado.
Repetindo ações,
entendendo que tudo isso
não passa, não disfarça,
piada sem graça.
Queimar tudo é
mais fácil.
Não nasci pra viver o fácil.
Só nasci pra ser otário.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

CONTATINHO

Eu não tenho nenhum
contatinho.
Gosto de encarar e
dizer
"tá escondendo nada não?".
Acredito que ficar
nessa lenga lenga
virtual
é como ver
uma prévia de um pornô
antes de se masturbar.
É por isso que
estou sozinho.
É por isso que
invejo meus amigos
e amigas
com suas milhares de
fodas casuais.
É por isso que invejo
minha mãe e
meu pai.
Porra, até meus gatos
transam.
Eu não.
Prefiro encarar.
Olho no olho.
Ninguém consegue manter
contato visual
por mais de dois segundos.
As garotas não me
olham mais
como me olhavam antigamente.
Garotos são fáceis.
Sempre foram.
E é por isso que
perderam a graça.
Eu não tenho contatinhos.
Talvez nunca os tive.
Sigo errado pelos
dias incertos.