sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

CÉU ROXO

Já era dez latinhas pra sete
e eu olhei pra cima
e vi a Deusa tendo
um de seus momentos.

O céu estava roxo.

Estavam brigando no boteco
da esquina.
O cão mastigava
ossos do lixo.
Mais uma lata e
algumas palavras soltas
sem sentido algum.
O mundo estava acabando.
A Deusa via tudo.

Antes de Bach compor
o que quer que tenha composto,
ele também viu a Deusa.
E Einstein, antes da bomba atômica.
E Picasso, antes da Guernica.
E Van Gogh, antes da orelha.
E Bukowski, nos correios.
E Clarice Lispector, cursando Direito.
E Marie Curie, antes do polônio.

E eu também vi,
como todas essas pessoas,
a Deusa e o céu roxo
antes de dar
uma bela cagada.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

PERDIDOS NA BEIRA DO TEMPO

Hoje já é semana que vem
e passou como ano-novo
atrasado em cada minuto
que passou voando.

Acorda, escova os dentes,
toma café.

Acorda, toma café,
olha no espelho.

O espelho esqueceu meu rosto.

E a morte continua sonhando.

Já te disse que
acredito no caos,
mas o caos não acredita
em mim.

Ontem foi futuro imperfeito.
Os planos foram rasgados e
perdidos na beira do tempo.

Na mesma mesa,
no mesmo copo,
a mosca morre,
a vida dorme.

EU SOU O SOL

"eu sou o sol e
o sol é meu deus"

ela disse "tá bom" e
bebericou o
bombeirinho.

"fodam-se as nuvens
pois eu sou o sol
e nem estou na terra"

ela não escutou.
a lua não ouviu.
o pombo morto distraiu-se.
o metrô continuou fechado.
o cigarro permaneceu caro.
nós permanecemos viciados.

"eu sou o sol
e alimento minha alma
com fusão nuclear"

a conta chegou e
foi ela quem pagou.
não lembro como cheguei
em casa.
não lembro como será
meu dia amanhã.
não lembro de ser
agora.

FOLHA MORTA

Meu amor 
é uma folha morta
esquecida na calçada.

Ou algo que combine com a figura.
Um rosto, uma folha,
um quadrado verde e
uma bola rosa.

Eu sonhei com isso
e agora que usei
o Paint pra
ilustrar meus sonhos,
percebo que
palavras não são suficientes.
Nunca foram e nunca serão.

Também descobri que
palavras não machucam.
Não, não são elas
que nos ferem.
Preste atenção da próxima vez
que te decepcionarem.
O que importa
está atrás da cortina,
atrás do balcão.
É questão de interpretação.

Meu amor
é uma folha morta
esquecida na calçada.

Impactante. Marcante.
Errante. 
Inferno de Dante.

Você tinha amantes
e eu não era um deles.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

PINGUIM

você disse que o ódio é tão útil
quanto um pinguim de geladeira
assistindo os surtos de alguém
em decadência.

mas o que sentir
quando se liga a TV
no jornal nacional?

pode ser inútil,
pode queimar a história,
carborizar afetos.

o ódio se alastra como um vírus
e é fácil ficar doente.

mas um pouco é necessário.
serve de impulso,
cria anticorpos.

afinal, meu pinguim de geladeira
conversa comigo, e é ele
que dá as ideias para os poemas.
eu sou só um impostor
roubando a arte da vida,
odiando quase todo mundo.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

PORRA

Tanta evolução
mas eu ainda não posso falar
porra.
Porque porra é um palavrão,
por mais que sejamos feitos
de porra.
Somos apenas
porra em metamorfose.
Mas os algoritmos vão
me censurar.
Você vai me censurar,
vai se sentir desconfortável.
Mas se minhas palavras
não te desconfortam
é porque não fiz meu trabalho direito.
Meu trabalho é uma porra.
Você é uma porra.
O mundo é uma porra
quente e massiva
grudada na pele do tempo.

RAGE QUIT

Uma pitada de ódio.
Veio das frustrações,
do que foi engolido à seco.
Uma faísca é o que inicia
a devastação.

Ninguém nunca soube seu nome.
Ninguém nunca soube seu nome.

As cinzas se perderam na chuva.
Os ossos se esconderam
nos escombros.
O que resta de um homem
quando decide partir?

Ninguém nunca soube seu nome.
Ninguém nunca soube seu nome.

A cidade nos digere.
A natureza deseja nosso fim.
Mas somos teimosos demais.
Quando sentiram o cheiro de gás,
já era tarde demais.
Um balde de ódio
e outros infortúnios.
Precisou apenas de uma faísca
para desistir do jogo.

Ninguém nunca soube seu nome.
Ninguém nunca soube.

domingo, 9 de janeiro de 2022

MACONHA

(texto escrito em 2014, com algumas alterações)

maconha não é droga.
droga é o preconceito.
droga é se esconder
atrás de um merda
só para se sentir especial.

maconha não é droga.
droga é a dependência,
essa algema de pelúcia
que prende seu potencial
à um líquido, um papel,
uma planta, 
4700 substâncias tóxicas,
1 relacionamento tóxico.

maconha não é droga.
droga é não viver.
droga é quando querem
que você não viva
só porque você fugiu do padrão.
não vale minha fé
quando querem que eu morra.
é uma droga odiar
aquilo que no fundo você é,
aquilo que você já foi.
seus antepassados,
seus vizinhos,
seus filhos.

maconha não é droga.
droga é deixar de sorrir
por medo do que vão pensar.
cobrir o próprio brilho estrelar
para que pedras otárias
não se sintam mal com suas
falhas.

maconha não é droga.
maconha só é uma droga
quando você se sente uma droga
sem ela.
maconha não é droga, droga!

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

A PSICODELIA DE SER (primeiro capítulo)

Eu só não quero morrer. Mas há um mal-estar me acompanhando, um mal-estar com cores amarelas, pétalas murchas, acordes desalinhados. Uma chuva que não cai direito, faz curva e não molha o chão como deveria.
  
Deitar não funciona. Já funcionou um dia, mas não agora. 
Eu só não quero morrer.
 
Meu violão me diz que pode ser meu amigo às terças. Segunda é dia de faxina. Tem de limpar as cordas, a sujeira incrustada entre uma casa e a outra. A Primeira e a Sétima são as piores, ele diz. Violão grandão. Nas quartas é meu voyeur. Vê o podre calejado, vomitado de meus poros. O resto da semana não existe.

Eu só não quero morrer.  

Tempo é uma questão de opinião. Não sei o que pensa a Terra do tempo do Sol, nem do tempo de si mesma. Não sei se a Terra se acha velha ou criança. Também desconheço o que pensam as estrelas sobre os buracos negros. Farão uma festa na bilionésima semana à partir de hoje; uma orgia, uma galáxia engolindo a outra, como o outono engole o verão e é engolido pelo inverno.

Todos os sexos que não fiz são a causa do problema. Devem ser a causa do problema. Pelo menos é a minha opinião, e opinião é questão de tempo. Os sexos que fiz também se uniram ao partido desprogressista. Passos para trás que dou todo domingo começo de mês. Domingos são os piores, eu poderia dissertar sobre seus malefícios até o dia da orgia intergaláctica caso meu corpo durasse tanta opinião. 

Eu só quero o que quero, o oposto do que não quero. Se não quero morrer, então eu quero viver? Mas estou vivendo meio que não querendo. E a culpa não é da vida. Já disse: sexo é a raiz da minha árvore parasita. Sou sugado por mim mesmo. 

A única coisa que não me suga é a cerveja. Cerveja e gastar as solas do meu All-Star nas calçadas paulistas desta floresta de pedras pixadas. Gosto dos pixos, são como tatuagens nos prédios, feitas por tatuadores de várzea corajosos o suficiente pra expressar seus demônios. 

Meus demônios só saem às sextas-feiras, depois do serviço. Trabalham no RH das emoções. Despedem as boas e contratam as péssimas. O partido desprogressista tem seus contatos. Para se divertirem, levam minha carteira e minhas chaves e a sola do meu All-Star até a adega mais próxima. O maço de cigarro se acha o bonzão. Se soubesse que já fumei de graça não cobraria um preço tão alto por suas toxinas. Meus demônios flertam com o mentolado e aquele que possui três vezes mais monóxido de carbono. 

Eu só não quero morrer.
Escolho o mentolado.